sábado, 5 de março de 2005

Fazer teatro

O maior ensinamento que o teatro pode trazer ao homem é sobre a sua própria humanidade”.

Às vezes eu fico me perguntando porque cargas d'água eu transformei o teatro em meu ofício e nunca encontro uma resposta breve. E se me é difícil explicar o por que eu faço teatro, imagine explicar porque raios eu resolvi ensinar este ofício a outros.

Não é uma razão dizer que o teatro é importante, porque a cultura é importante e etc... porque se eu tiver que escolher entre um livro e um pedaço de pão, e estiver morrendo de fome, vou preferir o pão porque o gosto é muito melhor.

Também se pode dizer que o teatro é uma panacéia universal pois desinibe os tímidos e acalma os agitados. Mas existem soluções mais simples para estes dois problemas, de forma que as respostas vão minguando...

É uma boa forma de contar uma história, ou de ensinar alguém a contar uma história”. Mas o teatro não é melhor nem pior nisso do que as histórias em quadrinhos, os RPGs, o cinema, a literatura, a televisão, os video-games, e todas as outras formas pelas quais nós, seres humanos, resolvemos contar algo a outros seres humanos.

E as alternativas vão rareando cada vez mais, até que ficamos nós, eu e você com mais uma questão complicada que revela o quão frágeis são as nossas certezas... Mas espere aí! Aí nos encontramos. Na fragilidade dessas certezas. Nos nossos conflitos com elas. E nos conflitos que podemos ter um com o outro na tentativa de esvair mais essa dúvida.

Finalmente! Essa é a matéria do teatro. Aí está a sua importância.

Aonde? Aonde?” Você pode me perguntar, voltando ao começo do texto para ver se eu escondi alguma mensagem cifrada entre os parágrafos. Mas eu sugiro que siga adiante.

Creio que a coisa mais importante que aprendemos com o teatro é a lidar com as diferenças, com os conflitos que podem surgir quando duas ou mais pessoas se envolvem na solução de um problema.

Construindo narrativas, se compreende como surgem os conflitos, como existem diferentes pontos de vista sobre a mesma situação e como estes pontos de vista podem se somar ou subtrair-se, apressando ou retardando a solução do problema proposto.

O teatro é sempre coletivo. Sempre. Mesmo quando sozinho eu escolho representar um personagem, sem envolver nenhuma outra pessoa nisso, estou trabalhando coletivamente. Eu e o personagem. Essa primeira diferença. O personagem é um outro, diferente de mim mesmo. Quando o construo, compreendo-me e compreendo a diferença. E me reconcilio com ela, porque coloco-me no lugar do outro. Isso é compreender o coletivo.

Ufa! Espero que tenha sido claro. E se não, avanço mais um pouco...

Haja visto que estamos sempre em grupo, tentando avançar na construção de uma narrativa que nós vamos criando juntos, as nossas diferenças de abordagem vão aparecendo. E os conflitos também...

Mas como a matéria da narrativa é o conflito, e nós estamos compreendendo esta mecânica, os nossos conflitos para tentar solucionar a narrativa vão sendo também compreendidos como diferenças de abordagem. E forma-se um espelho, onde os conflitos expostos pela narrativa, são gerados por conflitos expostos na tentativa de construí-la, porque estamos fazendo isso juntos.

Bem... Acho que agora eu confundi um pouco a ficção (narrativa) e a realidade (a construção da narrativa)... Além disso, o parágrafo anterior tem conflitos demais...

Acho que as aulas de teatro podem proporcionar ao aluno um espaço aonde a matéria mesma da aula é o conflito e a melhor maneira de solucioná-lo.

E se isso não for ouro no mundo em que vivemos, é melhor eu me aposentar ou procurar outra coisa para fazer.

Pandora

O deus criou o aparato e o enfiou dentro de uma caixa preta. Pensava ele que os homens eram imperfeitos, e que ao se meterem a copiar o aparato, cometeriam toda a sorte de erros e poriam um fim em tudo o que havia sido criado.

Postou a máquina na caixa e a selou, lançando uma sentença que proferia que o mal estava dentro dela, e que aquele que a conseguisse abrir, estaria liberando algo sem limites por sobre a Terra.

A menina, desconhecendo a sentença, viu a caixa num relance. E sem se importar com os alertas de seus semelhantes, que a essa altura mantinham uma distância gigantesca do aparato engavetado, se lançou numa caminhada apaixonada até a caixa preta.

A princípio olhou a caixa por todos os lados, em busca de uma fresta, uma entrada qualquer por onde pudesse ver o mecanismo, mas não encontrou nada.

Pandora, a menina, se sentou ao lado da caixa e a colocou sobre o seu colo. Ficou em silêncio, tentando escutar o som do mecanismo... Nada.

Um ancião, que ficou no sopé da montanha aonde estava a caixa, proferia ameaças à menina, que a essa altura já tinha um pedaço de rocha na mão, disposta a abrir a caixa à força.

Pandora golpeou a caixa, inúmeras vezes, até que uma lasca se desprendeu e ela pode ver o aparato. Insistiu um pouco mais até que a tampa se desprendeu e o aparato se revelou no chão.

Ao ver a máquina em movimento, quis saber o que a movia. E olhava para todas as peças encaixadas, procurando a origem do funcionamento. Mas não conseguia descobrir quem começava o quê.

Colocou então o aparato sobre o que restava da caixa e passou a contemplá-lo. A essa altura, o ancião já havia retornado ao povoado, correndo como podia com suas pernas rotas, e espalhava a todo canto que a menina havia liberado o mal.

Na contemplação do aparato, a menina julgou que iria tirar uma peça por vez e recolocá-la, até que a máquina parasse e ela descobrisse qual era a origem do funcionamento.

E assim procedeu. Tirava uma peça e via o que acontecia com o funcionamento. Recolocava a peça e mais uma vez observava como a máquina funcionava. Peça a peça, ela foi em busca da origem do movimento e ao final, não a encontrou.

No povoado, os homens em pânico, ateavam fogo a todas as coisas, pretendendo com isso afastar as bestas que viriam do interior da caixa. Mulheres e crianças se refugiavam no interior de casas que se tornavam fogueiras e em seguida sepulturas.

Alheia ao terror, estava Pandora. Que com a compreensão que julgava ter, descobriu na máquina um descuido de projeto. Empacotou como pode o aparelho, decidida a encontrar um sábio que pudesse melhorar o equipamento.

Quando chegou ao povoado, só viu cinzas.

Aterrorizada, lembrou-se dos avisos de todos e a compreensão cedeu à culpa. A menina lançou o aparato no meio das cinzas e desapareceu da história, se julgando a responsável pelo surgimento de todos os males.

Imagine um mundo em que todas as caixas pretas fossem abertas e que o funcionamento de todas as coisas fosse revelado. Onde cada um se sentisse responsável por aprimorar o projeto de tudo em benefício de todos. Onde o terror cedesse à curiosidade.

As pessoas abrindo mão de caixas seladas e de serviços prestados de forma tosca por exploradores que vivem do terror, buscando uma alternativa baseada em conhecimento compartilhado por todos.

Seríamos como a menina; com a compreensão de que não encontramos o mal dentro das caixas.

Mas a liberdade.

Sistemas

Um sistema é uma maneira de se enxergar a realidade.

Quando coexistem muitos sistemas, somos capazes de enxergar nas diferenças entre eles as maneiras pelas quais eles adequam a realidade segundo as suas perspectivas particulares.

Nenhum sistema é perfeito, mas se desejasse sê-lo, bastaria negar a existência de outros. Se obtivesse resultado nesta empreitada, o sistema e a realidade passariam a se confundir. As limitações desapareceriam, não por não existirem mais e sim por não existirem outros termos na comparação.

Qualquer hipótese não prevista por este sistema resultaria em uma falha catastrófica do mesmo.
Seríamos como cegos, conduzidos ao abismo.

O sistema perfeito se compreende como processo e nunca se pretende infalível ou acabado. Ele é permeável, suas regras são conhecidas por todos e podem ser discutidas e refinadas por qualquer um. Sua única regra rígida é que as mudanças sejam mantidas a olhos vistos, para que todos saibam onde as regras se alteraram. Para que o sistema continue em processo.

O propósito exclusivo deste sistema seria o seu aprimoramento constante.

Eu podia encerrar esse raciocínio dizendo que discorro sobre computadores e sobre sistemas operacionais distintos.

Mas o texto não é sobre isso. Ou pelo menos, não se reduz a isso.

Há um sistema que nos coloca em situação de aniquilar outros seres humanos, porque são concorrentes. Que nos promete prêmios cada vez mais longínquos. Que nos cerca de incerteza e de terror, porque assim consegue se manter intacto. Que nos faz ter medo do vizinho e nos cercar de alarmes e cercas, nos mantendo prisioneiros em nós mesmos. Que se proclama como a única regra do jogo, que é matar e morrer, na lei da sobrevivência pelo dinheiro.

Um sistema é só uma maneira de enxergar a realidade.

Há outros sistemas possíveis. Nós só precisamos agir e criá-los.

Não precisamos fazer tudo de uma só vez. E nem fazer tudo sozinhos.

Podemos contar sempre com os que nos cercam, no propósito do aperfeiçoamento constante de um sistema que será perfeito, não por ser infalível ou acabado.

E sim porque o seu único propósito é nos tornar verdadeiramente Livres....


Cia Bastarda de Teatro Plástico e Humorismo Batráquio ensaiando novo número de nado sincronizado.


Eu e a Clau, no dia do nosso casamento

Um deserto - dia 1

E se contasse que pediram ao sujeito que fosse em busca de um deserto. E que nesse deserto, o sujeito encontraria a deus. Eu mesmo riria.

Que num deserto o homem encontrasse algo além de sede e calor, eu mesmo riria.

E se esse algo mais fosse deus ou outra idéia estapafúrdia desse tipo, eu mesmo perguntaria se existe algo mais que possa aplacar essa sede que eu sinto de estar vivo. Algo mais que água e vida, que eu sinto correndo pelas minhas veias, fluindo de dentro para fora de mim. Tocando o mundo.

Ainda assim, eu fui.

Não por ordem, ou por qualquer determinação.

Nem mesmo a curiosidade me tiraria do sólido chão de cimento que eu levei anos para conseguir.

Eu estava firmemente disposto a não me mover de forma alguma.

Mas o solo mesmo se moveu.

E me vi no deserto.

E como não havia a menor esperança dentro de mim, de que deus estivesse naquelas areias, buscando algum idiota para tentar convencer das suas idéias sobre si mesmo, eu fiquei só com os meus botões.

No princípio a idéia de que nenhum semelhante ou dessemelhante pudesse me azucrinar com as suas questões insolúveis me trouxe plena satisfação.

Atirei longe o calendário e o relógio. E afirmei solidamente que não me comprometeria com nada mais, além de mim mesmo. E postei-me ali, sentado a contemplar o imenso vazio que se colocara sob os meus pés.

Me aborreci logo daquele silêncio. E logo passei a conversar comigo mesmo, desabafando comigo as minhas irritações, numa espiral louca que culminou com um desespero seguido por uma imensa irritação. E voltei ao princípio, azucrinado comigo mesmo.

Tentei em vão dormir, para livrar-me da minha companhia.

Mas o silêncio não chegava nunca.

Irrompi uma longa corrida, escapando por entre as dunas, na esperança real de me perder de mim mesmo. Mas cansei, e acabei me alcançando. E mais uma vez, fiquei só.

Esse foi o primeiro dia.

dia 2

Esse sol que vá para a casa do caralho! Ninguém te chamou aqui, filho da puta!” - Assim comecei meu segundo dia, insatisfeito com o dia, assim como estivera com a noite.

Que vão todos para o diabo, e que ele mesmo não venha até aqui reclamar comigo de superlotação no inferno. Vá para a puta que o pariu, seja ela quem for.”

E assim segui num longo discurso de congratulações a tudo e a todos pela imensa merda em que eu havia nascido junto com todos eles.

Armei-me de um galho qualquer e saí distribuindo bordoadas ao vento, que obviamente se esquivava diversas vezes, cansando-me. Por fim, o vento mesmo me abandonou e fiquei só, num imenso calor de meio dia.

O sol talvez não tivesse me entendido bem.

Que caralho que eu tenha vindo me meter numa situação dessas! Puta que o pariu!”

Vinha eu ao meu encalço novamente.

O problema é esse sol.” Redargui, procurando um outro culpado.

E como o cajado não alçava o céu, resolvi empregá-lo para algo mais que as exaustivas bordoadas. Resolvi usá-lo como uma coluna, numa empreitada para livrar-me do sol.

Finquei-o no solo, demarcando um limite entre mim, o sol e as demais criaturas de deus, ou de quem quer que seja, não importa.

Isso aqui é meu! E vocês que se fodam!”

Afastei-me de minha propriedade e saí em busca de algo que me servisse de teto.

Andei horas a fio, tendo por centro a coluna-central, mas não encontrei nada em extensão suficiente para configurar-me um teto.

O sol cansou-se aos poucos de fritar-me e retirou-se para a puta que o pariu.

Fiquei sem teto, em companhia da lua e de um deserto indeciso. Não sabia se era frio ou quente. Mudava de opinião constantemente.

Recostei-me na coluna, apenas suportando a companhia da lua que a esta altura não se revelava plenamente. Eu podia apenas vislumbrar a chateação de seu contato, sem no entanto vê-lo efetivado. Chateei-me só de pensar no contato com uma lua cheia de si. Insuportável.

E assim, chateado, encerrei meu segundo dia.

dia 3

Uma tosse. E a sensação de que algo estava me invadindo pela boca.

Assim principia o terceiro dia.

Tosse. Tosse. Uma mosca.

Pisei-a, matando-a mais de cem mil vezes, com cuspe e pisadas. Exauri-me de tanto matá-la, como se ao fazê-lo pudesse estar dizendo a todas as outras criaturas que se afastassem de mim, que jamais tentassem entrar pela minha boca ou por qualquer outro buraco de mim, porque eu as mataria mais de cem mil vezes cada uma.

Cuspi cem mil vezes antes de perceber que minha boca estava seca, e que não havia maneira de molhá-la novamente.

Mosca do caralho!”

Como se a mosca, do caralho ou de quem quer que seja, fosse a responsável pela secura dos meus lábios.

A mosca havia feito algo irremediável, de qualquer forma.

Não me restava outra alternativa senão abandonar o meu posto definitivamente.

Onde é que se esconde a água num deserto?”

Queria roubar o tesouro precioso da terra, mas não sabia por onde começar.

Saquei do galho e rumei sem rumo, esperando que o deserto, num gesto indiscreto, me revelasse onde estava o seu butim, mas a areia era pudica demais.

Mais uma vez, prostrei-me no chão.

Rios e rios escorriam de mim, sem que eu encontrasse rio algum.

Não sabendo achar, esperei que fosse revelado, mas nada surgiu.


Silêncio. Sem vento. Sem água, nem nada.

Um zunido. Uma mosca. Um tapa.


Um silêncio.


E esse foi o terceiro dia.

dia 4

Acordei em meu quarto dia propenso a enfrentar o deserto e todas as suas suscetibilidades.

Se não me desse um teto, eu o arrancaria.

Sugaria toda a sua água, comeria tudo o que encontrasse.

Secaria o deserto, antes mesmo que ele me secasse.

E com esses suaves pensamentos, resgatei o meu cajado e empreendi uma longa caminhada em direção ao vazio.

Fora com o sol! Limparei essa areia imunda até que surja a água!”

Um higienista!

E andei com olhos atentos.

E como se o deserto não me facilitasse as coisas, eu cavouquei o chão num lugar qualquer, em busca de água, até que meus dedos se esfolassem.

O buraco era pouco maior que uma cova, mais uma ironia do deserto dizendo: “Isso mesmo! Mate-se, antes que eu o faça!”.

Mandei-o tomar no cu e entrei na minha habitação com uma sensação de triunfo.

Neste regalo, repousei e com isso as memórias se refrescaram um pouco, trazendo à tona a informação obtida sei lá em que lugar, de que os cactos do deserto guardavam para si um pouco de água.

Sorri, discretamente, para que o deserto não soubesse do meu triunfo. E ao anoitecer saí, sorrateiro, empreendendo ainda o meu roubo, mas dessa vez a vítima não seria o deserto, pai de todos. Seria um frágil cacto.

Lá estava o sujeito.

Era um cacto meditativo, aquele. Olhava para o vazio e permanecia ali perene. Um iogue.

Abordei-o com o meu cajado e sem empreender com ele diálogo algum, sentei-lhe porretadas, até que uma águazinha muito ridícula brotasse de seus galhos feridos. Bebi-a sem cessar. E como se pudesse arrancar de minha vítima ainda mais fluido, mordi seus pedaços, enfrentando espinhos e dor, para arrancar ainda mais água.

O riso que dei é inexprimível.

E com essa sensação de que nada mais podia ser dito sobre aquele assassinato, encerrei o meu quarto dia, abraçado ainda com os pedaços do infame cacto.

Algebra moderna

Um excelente carro importado custa a um homem, mil e quinhentos reais por mês, num prazo de quarenta meses.

Durante este período, o homem contrata um empregado, que lhe custa trezentos reais mensais.

Para manter seu carro em segurança, o homem investe em alarmes, seguros, combustíveis de última geração, blindagem à prova de balas, gastando com isso mais dez mil reais, divididos no mesmo prazo.

Por sua vez, para manter seu empregado, basta-lhe uma promessa de aumento e de um futuro melhor, sem que o homem precise abrir mão de um tostão sequer.

No final de quarenta meses, quem valerá mais: o homem ou seu carro?

sexta-feira, 4 de março de 2005


O Arthur e o Janô conversam com Peter Sellers no filme "Doutor Fantástico". Posted by Hello


Aqui uma rua com duplo sentido da Costa Rica Posted by Hello