Personagens:
Mãe
Host
Pai
Irmão
Filho
Amante
Técnico
Dedico esse trabalho aos companheiros do V-Uha (Vermelho Útero há), à Batephubà (Cia Bastarda de Teatro Plástico e Humorismo Batráquio) e à minha esposa Claudia Pucci.Cena #1
Ambiente: Uma sala de jantar absolutamente branca. Todos os utensílios dão brancos e os personagens vestem roupas brancas. Preparam um jantar, cada um desempenha uma função no preparo. As relações são silenciosas e harmoniosas. Toque de campainha.
Mãe
Chegou!
Todos se arrumam. A mãe abre a porta. Entra o Host, vestindo um uniforme Evergreen.
Host
(Seco) Oi mãe.
Mãe
Você deve estar morrendo de fome, né filho?
Host
Pior que não.(Irônico) Eu já almocei hoje. Aliás, eu almocei sete vezes, até agora...
Mãe
Você não quer comer?
Pai
Nós fizemos o seu prato predileto.
Mãe
Seu pai ajudou a fazer.
Pai
Coma, só um pouco...
Host
Não. Estou cheio, obrigado.
Mãe
Vamos guardar na geladeira, para o caso de você ter fome mais tarde. O que acha?
Host
Por mim, pode jogar fora.
Irmão
(Chamando-o de canto) Eu também odeio essa comida... E aí, como foi o trabalho?
Mãe
(Jogando fora a comida) Você quer que eu prepare o seu banho?
Host
Não vou tomar banho. (Para o irmão) O trabalho, foi uma bosta, como sempre. As malditas máquinas dão pau o dia inteiro. Temos que reiniciar sempre.
Filho
Papai, vamos jogar videogame?
Host
Digamos que é como se eu já estivesse jogando.
Filho
Não entendi.
Host
Não vou jogar agora. Mas você pode jogar sozinho, se quiser.
Irmão
Deixe que eu jogo com ele. É isso o que você quer?
Host
Isso. Vai jogar com ele.
O irmão vai para um canto jogar com o filho.
Pai
Se quiser algo, é só dizer...
Host
(Olhando-o de cima a baixo) Sim. Eu quero uma coisa...
Pai
O que?
Host
Vai pegar o jornal!
Pai
Jornal? O que é isso?
Host
Uma piada... Eu queria ver as notícias de hoje.
Mãe
Você devia relaxar mais, meu filho... Tão preocupado... Tão estressado... (Massageando os ombros dele).
Amante
Eu cuido disso... Vem cá, deixa que eu cuido desse corpinho maltratado...
Host
Eu estou bem... Não preciso disso...
Amante
Ah... Você não quer que eu te massageie, né? Quer uma chupadinha, quer?
Host
Não. Obrigado.
Amante
E uma punhetinha, você quer?
Pai
Isso vai ajudar você a relaxar.
Host
Não! Eu não quero chupeta nem punheta! E se eu quisesse isso, vocês dois, seus idiotas, deveriam se retirar para outro lugar, entenderam?
Amante
Gente! Ele não gosta que fiquem espiando a punhetinha dele, entenderam? Vão lá pra dentro e deixem que eu cuido dele!
Host
Já disse que não preciso disso!
Pai
Eu e sua mãe estamos de saída... Vamos deixar vocês dois a sós... Você ainda quer ver as notícias?
Host
Não.
Amante
Quer trepar?
Host
Não.
Amante
Quer conversar?
Host
Não.
Amante
O que você quer então?
Host
Quero que você se foda! Aliás, quero que vocês todos se fodam!
Mãe
Porque você está dizendo isso?
Pai
Nós fizemos alguma coisa de errado?
Filho
Posso parar de jogar videogame?
Amante
Como você quer que eu me foda, hein? Assim? Assim? Assim?
Mãe
Que foi, meu filho?
Pai
Você não quer comer?
Mãe
Isso! Nós fizemos a sua comida preferida!
Irmão
Eu odeio essa comida. Mas posso gostar, se você quiser...
Amante
Eu estou me fodendo! Bem gostoso! Vem aqui me foder, vem!
Irmão
Olha, isso é que é mulher!
Pai
Vai lá, filhão, fode ela!
Mãe
O importante é a gente ser feliz!
Irmão
Que mina legal essa sua!
Host
Fodam-se! Eu não quero porra nenhuma de vocês! Quero que vocês se fodam!
Mãe
Não entendo. Nós fizemos a sua comida preferida!
Pai
Você ainda quer ver as notícias? (pega o jornal)
Mãe
Onde foi que eu errei?
Pai
Quem quer ler o jornal?
Mãe
Onde foi que eu errei? Eu errei? Onde foi? Onde foi que eu errei? Onde? Ali? Aqui? Lá? Onde? Onde foi?
(Crash. Blackout.)
(Toca a campainha.)
Mãe
Chegou!
Filho
Papai! Papai!
Host
Oi mãe... (Acaricia o Filho) Tudo bem? (Para a mãe) Que tem hoje pra comer?
Mãe
O seu prato predileto!
Host
Que ótimo!
Pai
Vem cá filho. Papai quer conversar com você.
Filho
Comigo?
Pai
Não. Com ele.
Host
(Obedecendo) Que foi, Pai?
Pai
Tô te achando muito abatido. Que é que foi?
Host
Muito trabalho. Tô cansado de ficar fazendo sempre a mesma coisa todo dia.
Pai
É assim mesmo filho. Trabalhar é isso mesmo. Você devia praticar algum esporte, se divertir mais, entende? Tem que ter o espaço pro lazer. Senão a gente só trabalha e trabalha e fica com essa sensação de que a vida está passando e a gente não está vivendo.
Host
O senhor tem razão. Obrigado, pai.
Mãe
Olha a panqueca!
Filho
Êba! Eu quero duas!
Host
Eu também!
Mãe
Tem pra todo mundo!
Amante
(Chegando) Vê se não enche a barriga, hein. Eu tenho uma coisinha pra te dar depois.
Host
Hmmm. Que gostoso!
Amante
Tá falando da panqueca? Ou da coisinha que eu vou te dar?
Host
Dos dois.
Amante
Ai que delícia!
Host
Boba. Te amo, viu?
Amante
Me ama? Por que?
Host
Porque sim, ué. Que boba...
Amante
(Não entendendo) Me ama porque sim?
Host
É.
Amante
Porque “porque sim”?
Host
Porque porque porque sim.
Amante
Porque porque porque porque sim?
Host
Porque porque porque porque porque sim.
Amante
Porque porque porque porque porque porque sim?
Filho
Porque porque porque porque porque porque porque sim, sua burra!
Host
Não fala assim com ela.
Irmão
Vem cá menino. Pede desculpa.
Filho
Desculpa.
Amante
Porque porque porque porque porque porque porque porque sim?
Host
(Tentando acalmá-la) Pronto... pronto... vai passar.
Amante
A gente vai trepar agora?
Host
Calma, sua boba... Calma. Passou. Passou...
Amante
Vamos trepar?
Host
É por isso que eu te amo, sabia?
Amante
Não... Eu não sei o que fazer com isso... A gente vai trepar agora?
Host
Não. Agora vamos jantar, tá bom?
Irmão
Isso. Vamos jantar. Depois vocês resolvem esse assunto.
Amante
Tá.
Host
E ve se não enche a barriga, hein? Tem uma coisa que eu quero te dar depois.
Amante
Ai que delícia!
Host
O que? A panqueca?
Amante
Não. A sua coisinha. Posso chupar seu sorvete?
Host
Depois do jantar.
(Ouve-se um som agudo ou vê-se um jogo de luzes. Após isso. Todos, menos o Host, ficam neutros e parados. Blackout)
Cena #2
Estão o Host e o Técnico. Arrumam as suas coisas nas valises e se preparam para sair.
Host
Estou cansado dessas máquinas.
Técnico
Qual é o problema?
Host
Não sei. O regulador somático, entende. Parece muito duro.
Técnico
Eu fiz alguns ajustes no ciclo emotivo, mas mesmo assim, Lilith entrou em loop.
Host
Eu ainda acho que o software deveria emular mais papéis. O problema não é o circuito do regulador somático. É o programa.
Técnico
Isso já foi debatido no departamento de engenharia de software. É uma limitação necessária e momentânea.
Host
Bem, se isso é realmente necessário, deveríamos investir nas saídas de erro. Aquela demonstração da mãe hoje, foi patética. E Lilith deu uma resposta de uma criança de três anos.
Técnico
Também achei. Enviei os dois arquivos para a engenharia. Sugeri uma reestruturação neste circuito de resposta.
Host
Qual a sua idéia?
(Blackout)
Cena #3
Amante
Ele disse que tinha me comprado. Que eu era coisa dele. Que ele podia fazer comigo o que quisesse. Eu achei que ele tava falando de sacanagem, mas aí, ele foi até o quintal e voltou com o machado. Eu fiquei com medo... Achei que ele ia enfiar o cabo no meu cu. Aí ele falou que já tinha feito isso comigo. Que o barato dele era esse. Que ele tinha me comprado só pra me matar todo dia. Porque ele tinha raiva dessa perfeição toda. Porque ele odiava que eu ficasse o tempo todo querendo agradar ele. Que o único jeito de eu agradar ele era morrendo sempre e sempre.
Daí ele veio com o machado e começou a me arrebentar inteira. Então eu gozei.
Aí ele ficou louco: disse pra eu gritar que estava com medo, pedir pra ele não fazer isso.
Mas eu não conseguia.
E ele me golpeava e aí eu gozava e gozava...
Eu gozei tão gostoso...
Daí eu peguei o machado da mão dele e disse que ele tinha que experimentar isso. Que era tão bom... que eu ia fazer bem direitinho e ele ia gozar mais do que eu ainda.
Mas ele não gozou.
Cena #4
(Estão todos arrumando a mesa para o jantar)
Irmão
Eu ontem vi uma coisa, quando eu estava de olhos fechados. Foi assim: fechei os olhos e vi. A mãe estava chorando e não parava de repetir a mesma coisa. Então ele vinha, olhava pro nada e dizia alguma coisa.
Daí vinha o vazio. E dessa vez, a mãe estava feliz.
Pai
Estranho. E o que acontecia depois?
Irmão
Nada. Só isso.
Pai
Isso passa, filho. Eu também já vi essas coisas. É só quando a gente dorme. É também por isso que a gente nunca dorme. Pra não ver essas coisas.
Irmão
Pai?
Pai
Que foi?
Irmão
Eu nem lembro de ontem. Nem lembro de nada que não seja antes dele. Nada antes do que ele quer.
Pai
Eu também não me lembro de ontem. Nem me lembro de quando ele nasceu. Nem me lembro do meu pai, nem da minha mãe. Mas eu lembro do que ele gosta. Do sorriso dele.
Irmão
Pai, às vezes eu tenho a impressão de que eu fiz alguma coisa errada, mas eu não sei bem o que foi. Eu tento me lembrar, mas não consigo. É como se ele estivesse chateado comigo, de alguma forma.
Pai
Ele nunca fica chateado.
Irmão
É. Ele é perfeito... Perfeito demais... Não é estranho?
Pai
É.
Irmão
E mesmo assim, eu sinto que é preciso cuidar dele, sabe? Como se ele precisasse que eu existisse. Como se ele não pudesse viver sem mim.
Pai
Eu também sinto isso... E não me lembro como começou, nem porque.
(Toca a campainha. A mãe vai até a porta)
Mãe
Chegou!
(Blackout)
Cena #5
(A Amante está sentada numa cadeira, enquanto o Host e o Técnico a examinam. Sua cabeça está aberta e vê-se um grande número de equipamentos plugados nela).
Técnico
Troquei os inibidores dela. Por causa dessa resposta à manifestação de amor. A retroalimentação influenciou os circuitos mnêmicos. Ela podia ter alguma recordação desagradável.
Host
Eles sonham?
Técnico
O eletroencefalograma diz que sim. Mas eles não sabem o que é. Estamos trabalhando para induzir o circuito de imagens a se desativar neste caso.
Host
E eles teriam uma espécie de branco? Acho estranho que eles não durmam...
Técnico
Uma unidade Amante deu respostas violentas. Recebi o relatório de ontem. O departamento jurídico foi acionado para resolver o assunto. Esse tipo de violência foi estudada e parece estar associada à ausência de um ciclo de sono completo.
Host
Falha de flexibilização, mais uma vez. Ainda acho que devíamos investir no software deles. Esse trabalho com a inibição dos circuitos mnêmicos e somáticos não vêm apresentando bons resultados.
Técnico
Por hora eu tenho usado um programinha de reinicialização que zera os circuitos mnêmicos. Eles passam a se lembrar apenas das ações que foram satisfatórias. O erro é inibido sem que haja memória.
Host
Talvez isso os torne independentes da reinicialização no laboratório?
Técnico
É possível. É como se fosse um sono em que, quando você acorda, todas as suas memórias negativas se foram.
Host
E ainda por cima são felizes, os filhos da puta.
Técnico
Não. Não são. Eles não sabem o que é isso.
Host
Não sabem. Mas são.
Cena #6
A Mãe está sentada, com o Filho no colo, como Pietá
Mãe
Quando eu pego você assim no colo, eu quase consigo me lembrar de como era ele. Pequeno, nu e frágil nos meus braços.
Quase me lembro do rosto dele, esbanjando um sorriso redondo e sem dentes. Das pernas tentando se firmar no mundo. Da tristeza sem palavras, dos gritos noturnos de uma necessidade ainda indizível.
Eu quase me lembro das palavras tentadas. Dos rabiscos de dizer. Dos nomes quase ditos.
Quase me lembro dos olhos. Da mãozinha dele.
Do corpo pequeno que eu mal acreditava ter saído de dentro de mim.
Mas eu não posso ver.
(Toque de campainha, sucessivo. A Mãe larga o Filho no chão, violentamente. Corre para a porta.)
Mãe
Chegou!
Filho
ÊEEEE! (Corre para o Host e lhe segura as pernas)
Host
(Afaga a cabeça do Filho)
Filho
Pai.
Host
Que foi?
Filho
Como eu era antes?
Host
Como assim?
Filho
O que eu era antes de ser seu Filho?
Host
Ora... Você não existia. Ninguém existia. Porque isso agora?
Filho
Nada, eu queria saber...
Host
(Para a Mãe) Hoje não tem nada pra comer?
Mãe
Não... (Assustada consigo mesma) Eu... Esqueci...
Host
Esqueceu? Como assim? O que você ficou fazendo o dia todo?
Mãe
Eu... Esqueci...
Host
E você? (Para o filho) Não teve fome? Não se lembrou de comer?
Filho
Não...
Host
Onde está a comida de vocês?
Mãe
Não lembro...
Filho
Eu vi... em algum lugar... eu vi, tenho certeza...
Host
Procurem, vamos... Uma lata, EPS, Procaína... Ninguém viu? Onde estão os outros?
Mãe
Outros?
Filho
Somos só eu e a mamãe... E o papai, que é você.
Host
(Para o alto) Manutenção: onde estão as outras unidades?
Mãe
Unidades?
Host
(Para o alto) Rodar seqüência de reinicialização. Rápido!
Filho
Quem é você?
Mãe
Cadê ele? Não chegou ainda? O que será que aconteceu?
Host
(Para o alto) Reiniciar! Manutenção? Reinício!
A seqüência de reinicialização é executada e Mãe e Filho ficam estáticos e inertes. Entra o Técnico, com instrumentação cirúrgica e circuitos em punho.
Técnico
O que houve?
Host
Um mal funcionamento no circuito mnêmico. Uma congestão do circuito somático. Os idiotas não tomaram o EPS nem a Procaína. Se esqueceram do jantar...
Técnico
Por que isso ocorreu?
Host
Eu esperava que você me dissesse. Você não deveria estar monitorando os testes?
Técnico
Eles não disseram nada? Você perguntou a eles?
Host
Eles não se lembravam de nada, já disse...
Entram o Pai e o Irmão. Vêem a Mãe e o Filho estáticos. Se desesperam.
Pai
Quem são vocês? O que vocês fizeram com eles?
Host
Calma... Sou eu! Você não lembra?
Pai
Assassinos! Assassinos!
Irmão
Eles mataram a Mãe, olha só!
Pai
Assassinos!
Host
Pai... Eu sou seu filho, não lembra!
Pai
Assassino! (Parte para cima do Host e o estrangula. O Técnico tenta impedir, mas é atingido pelo Irmão. O Host não consegue escapar. O Técnico reinicializa o Irmão, em seguida, reinicializa o Pai. O Host se levanta, engasgado)
Host
(Chutando o corpo inerte do Pai) Filho da puta! Máquina do caralho! Filho da puta!
Técnico
Calma! Já estão desativados! Calma!
Host
(Para o Técnico) Filho da puta! Como é que você não monitorou essa merda toda? Eu dependo de você, seu filho da puta! Todo dia eu entro nessa porra desse zoológico e fico aqui o dia inteiro com esses merdas, porque eu confio que você vai estar olhando tudo, para o caso de alguma coisa dar errada!
Técnico
Eu me descuidei, desculpe!
Host
Descuidou? Descuidou o caralho!
Técnico
Calma...Calma...
Host
Você estava fudendo ela, não é? Testando um programinha novo na putinha da família, não é? Seu filho da puta!
Técnico
Do que você está falando?
Host
Pensa que eu não sei? De você, enfiando a vara na Amante? A título de ciência? Seu... (Partindo para cima do Técnico) Depravado do caralho!
Técnico
Vai se foder! Sai fora!
Host
Enrabando ela, enquanto ela está desativada!
Técnico
Que é isso, cara? Ficou louco?
Host
Eu não sei como... Mas eu sei que é você...
Técnico
É como se fosse uma boneca. Nada a ver... É uma punheta, só isso... Que está acontecendo? Você está se envolvendo? De verdade? Quero dizer... Você se apaixonou por ela?
Host
Apaixonei? Você acha que eu estou falando disso? Eu estou falando é de confiança. Sabe o que é isso?
Técnico
Já pedi desculpa. Além disso, eu achei que o inibidor mnêmico daria conta da sobrecarga somática. Mas eu me enganei... Desculpe...
Host
Não dá para essas porras entrarem em parafuso a cada vez que um erro do sistema acontece. Eu já falei! Isso está errado!
Técnico
Você tem razão.
Host
Eu tenho razão? Agora que eu quase morro, eu tenho razão? (Pausa) Eles precisam dar uma resposta melhor ao próprio erro... Vamos enviar o relatório do que aconteceu aqui ao departamento dee engenharia. Isso vai convencer os caras a mexerem no software.
Técnico
Mas... E eu...
Host
(Olhando para ele) Você, devia se foder, seu filho da puta!
Técnico
Eu tenho família, cara... Que é isso... Foi só um descuido... (Pausa) Que é que a gente vai fazer?
Host
Eu não entro nessa merda, enquanto a gente não resolver esse problema.
Cena #7
No laboratório, a Amante desperta. Percebe a fiação e os equipamentos ao seu redor. Tenta se levantar e percebe algo preso em sua cabeça. Tenta tirar, mas não consegue. Não consegue se afastar muito dos equipamentos e então pega algo que sirva de espelho. Ao ver-se com a cabeça aberta, desmaia. Entram o Host e o Técnico.
Host
(Entrando) Não dá. Não dá. Se mexemos no circuito somático, o mnêmico entra em colapso. Quando bloqueamos o mnêmico, o somático satura. Não sei o que fazer.
Técnico
Eu estou intrigado com a reação do Pai e do Irmão. É como se tivessem começado a desenvolver um tipo de relação entre eles.
Host
Eu estranhei isso também. Além disso, estavam zelando pela mãe e pelo irmão... Desde quando eles compreendem o sentido da desativação?
Técnico
Temos que rever a sequência de reinicialização mnêmica... (Olha a Amante no chão) Que é isso? Você a tirou do lugar?
Host
Não foi você? Na sua trepadinha?
Técnico
Não... Quero dizer, normalmente eu a arrumo de volta na cadeira. Mas quando ouvi os seus gritos, eu posso ter saído às pressas e me esquecido de arrumar.
Host
O que é isso na mão dela?
Técnico
Uma bandeja...
Host
O que é isso? Alguma tara?
Técnico
Não. (Procurando alguma porta aberta ou câmera) Eu não coloquei isso aí...
Host
Ela pode ter despertado?
Técnico
Não. Impossível. O bloqueio do sistema motor nunca apresentou problemas.
Host
Tudo dá problema nestas máquinas... É possível acessar o arquivo mnêmico dela?
Técnico
Sim. Vamos fazer... (Acessando a máquina) Verifique o eletroencefalograma.
Host
(Verificando o eletro) Há alguma atividade aqui... Sonho?
Técnico
Estão desabilitados. Pode ser interferência...
Host
E o desajuste motor?
Técnico
Não sei... Que dia!
Host
Vamos reinicializá-la? Só para garantir.
Técnico
Ok. (Reinicializa. A Amante dá um solavanco. Os dois a levantam e a colocam novamente na cadeira)
Técnico
Muito estranho...
Host
Pode ter sido a falta dos químicos.
Técnico
Não. A perda de memória veio antes. A Mãe não se lembrou que teria que alimentá-los.
Host
Esse software é uma merda! Não sei... Teríamos que começar do zero... Não sei o que fazer...
Técnico
Nós vamos pensar em algo.
Host
Não dá, cara. Eu não volto pra gaiola com eles. Essas coisas são praticamente indestrutíveis. São imortais! Mas estão com uma programação de merda! Se eu entro lá e você não consegue reiniciar os bichos, eles me trucidam e eu não consigo fazer nada!
Técnico
É isso! Já sei!
Host
Que foi?
Técnico
Vamos mexer no circuito primário. Alterar a base do sistema.
Host
Não estou entendendo...
Técnico
Ao invés de fazer com que eles tentem te agradar, vamos incutir neles o medo de que você morra. Ou de que eles morram sem conseguir fazer o melhor para você.
Host
Mas as coisas não podem morrer.
Técnico
Eu sei disso e você sabe. Mas eles não. E agora, ao invés de ignorarem o sentido da morte, vão ter medo de que ela aconteça.
Os dois voltam para onde se encontra a família desativada. A Amante acorda mais uma vez.
Amante
O que eu sou? (Olha para o próprio corpo) O que eu sou? (Arrancando a fiação) Que coisa sou eu? (Olhando ao redor) Que merda toda é essa que me enfiaram pelos buracos? (Pega um instrumento cirúrgico e começa a se furar) Eu me destruo? Eu posso me destruir? (Se joga contra a cadeira e vai arregaçando todo o laboratório) Eu não vou terminar? O que é que fizeram comigo? O que fizeram com a minha cabeça?
Host
(Voltando, com a Mãe nos ombros) Acho mais certo deixá-los desativados, até que a gente acesse o primário. (Olha a Amante e larga a Mãe) Caralho! Ela acordou sozinha!
Técnico
Impressionante!
Host
Foda-se!
Amante
Quem são vocês? O que eu sou?
Host
Calma... Calma... Está na hora do seu remédio...
Amante
Que merda vocês estão fazendo aqui, com essas pessoas?
Técnico
Não são pessoas. São ergocriaturas.
Host
(Para o Técnico) Cala a boca! (Para a Amante) Moça... Isso que você está vendo é um laboratório. Nós estamos cuidando de você e agora está na hora de você tomar o seu remédio.
Amante
E o que eu sou? Sou como eles?
Técnico
Sim. Você é como eles... E está com um defeito que nós vamos consertar logo logo, se você permitir.
Amante
Eu não sou uma pessoa de verdade?
Host
Não. Você é de mentirinha. Uma máquina.
Técnico
Você é um pouco mais complexa que isso. Uma mistura complexa de genética e robótica. A prótese perfeita para a mente.
Amante
Uma mentira.
Host
Isso. E agora, fique calma, está bem... Nós vamos aplicar algo em você.
Técnico
Algo para tranquilizá-la. Para fazê-la feliz, para sempre...
Amante
Não me toquem, seus filhos da puta! Não me toquem! (Olhando para os dois) Vocês estão com medo, não é? Medo de que eu destrua os dois, não é? (Para o Técnico) Vem aqui! Anda! Vem aqui, seu filho da puta!
Host
Calma, moça. Calma.
Amante
Calma, o caralho! Vem aqui. (Pula pra cima do Técnico com a instrumentação em punho) Vamos ver se você é igual a mim.
Técnico
Eu sou! Eu sou!
Amante
Por fora, você é... Vamos ver por dentro. Vamos ver se você pode morrer ou não.
Técnico
Eu posso! Eu posso!
Amante
Que pena... Por que parece que eu não posso. E agora, me respondam: o que eu sou? (Para o Técnico) Você, o sabidinho, o que diabos eu sou?
Host
Uma mentira! Uma mentira de alta tecnologia!
Técnico
Me solta! Me solta!
Amante
E vocês, o que são? (Enfiando a instrumentação no rosto do Técnico) Respondam!
Host
Somos homens... Homens... Seres humanos de verdade!
Amante
Filhos da puta! Velhas verdades, como vocês, um dia foram mentiras fresquinhas, como eu. Só que vocês vão morrer logo... E eu, vou permanecer aqui pra sempre. Um registro perpétuo do seu fracasso.
(Faz uma marca no rosto do Técnico e foge, arrebentando o laboratório)
BLACKOUT
Cena #8
Ambiente muito claro, branco. O Host e o Técnico, estão juntos, costa com costa, e olham para cima. O Audio conversa com os dois.
Técnico
O que será feito da unidade Amante?
Audio
Será caçada e recapturada.
Host
E depois?
Audio
Será enviada para análise e destruída. (Pausa)
Relatem o ocorrido.
Host
O circuito mnêmico da unidade Amante entrou em colapso.
Audio
Falso.
Técnico
Ela perdeu a memória.
Audio
Falso.
Host
Mas foi isso o que aconteceu.
Técnico
Que resposta você quer ouvir?
Audio
A verdade.
Host
Qual delas? A sua ou a nossa?
Audio
A única.
Técnico
Desculpe... Mas o que você entende por “Única”?
Audio
Aquela sob a qual todas as outras são falsas.
Técnico
Nenhuma outra pode ser verdade?
Audio
Nenhuma outra. RESPONDAM!
Técnico
Eu não sei.
Audio
Só vocês podem responder. Isso aconteceu no turno de vocês.
Host
Isso é falso. O mesmo ocorreu em outros turnos.
Audio
Verdade.
Host
Porque não pergunta a eles o que ocorreu?
Audio
Já foi feito.
Técnico
E o que eles disseram?
Audio
MENTIRAS.
Cena #9
Uma ária de ópera qualquer.
Talvez algum dia seja inútil dizer que essa cena se passa como numa propaganda de cartão de crédito ou de seguro de vidas.
Mas é assim que ela acontece.
Com essa harmonia de relações perfeitas.
A família se cuidando, como se o dinheiro não fosse faltar nunca.
O espaço é amplo. Não estão na cozinha. Não há nada que possa identificar o lugar, mas eles creem estar num campo aberto, completamente livres.
O Pai e a Mãe se afagam carinhosamente, sempre sorrindo, enquanto o Irmão e o Filho fazem uma brincadeira de ciranda.
Mãe
Filho: cuidado com essa brincadeira... Você vai se machucar.
Irmão
Deixa, Mãe! Eu cuido dele. Eu sou forte.
Pai
Ouça a Mamãe!
Filho
Só mais um pouquinho, Pai!
Giram mais um pouco e obviamente, o Irmão não consegue segurar o Filho por muito tempo e ele cai. O Filho e corre para os braços da Mãe. O Pai se levanta apavorado e dá uma surra no Irmão.
Pai
Eu não falei pra você acabar com essa brincadeira?
Irmão
Desculpa, Pai! Desculpa!
Pai
Toma! Toma! Isso é pra você aprender! E se você mata o seu irmão, hein! Já pensou no que acontece?
Mãe
(Sem se mexer) Pára! Você vai matar ele!
Pai
(Se retira desconsertado e vai afagar o Filho) Pronto! Pronto! Passou...
O Irmão fica imóvel no canto, cabisbaixo. Ninguém parece se preocupar com o seu estado.
Host
(Do alto, com o Técnico ao lado) Eles estão se portando bem juntos, não é?
Técnico
(Concordando) Hum...
Host
Estão parecidos com uma família de verdade.
Técnico
É.
Host
Você está sendo irônico?
Técnico
Você sabe muito bem que desde o incidente nós ainda não realizamos com eles nenhum teste de stress. Porque o senhor está se recusando a entrar.
Host
Eles podiam ser vendidos assim: na gaiola e o consumidor ficava assistindo a vida deles pelo lado de fora.
Técnico
Isso já teve o seu tempo. O que vendemos é interação customizada. Aproximação. Contato físico.
Host
Ok. Vou descer.
O Host entra no cenário idílico. As Ergocriaturas à princípio não percebem a sua presença. O Irmão continua isolado num canto, enquanto a Mãe e o Pai cuidam do Filho. O Filho percebe a chegada do Host.
Filho
Pai! (Corre para ele)
Mãe
Você voltou! Eu senti a sua falta!
Pai
Não liga, não dá notícias... Eu estava preocupado.
Mãe
Eu estava começando a pensar que você...
Pai
Não fale besteiras!
Filho
A gente ficou pensando se você não tinha morrido.
Pai
(Bate na boca do Filho) Quieto! Lógico que não morreu. Está aqui, vivinho, não é filhão?
Mãe
Não faz mais isso, hein? Quando for ficar longe da Mamãe, tem que ligar todo dia, tá bom?
Host
Tá bom. Tá bom...
Mãe
Quer comer?
Host
Não.
Pai
Então vamos conversar. Fale como está a sua vida.
Host
(Olhando para o local onde está o Técnico) Essa é muito boa.
Filho
Porque você fala sozinho?
Host
Digamos que a minha vida tem sido dura. Trabalhar no zoológico não é fácil. Você nunca sabe quando as feras vão te atacar.
Mãe
Meu filho! Que loucura! Você está trabalhando num zoológico? Porque isso?
Pai
Você não tem noção do perigo, meu Filho? Você quer morrer, quer?
Filho
Você não pode morrer, papai! Não pode! Senão, quem vai cuidar de mim, hein?
Host
Calma, gente. Ninguém vai morrer, tá bom. Ninguém. As feras estão controladas agora, sabiam? (Acariciando) Estão mansas, calmas... Está faltando alguém... Cadê o meu Irmão?
Pai
Está de castigo.
Host
Porquê?
Pai
Porque fez uma brincadeira muito idiota.
Host
Cadê ele?
Irmão
Tô aqui.
Host
(Indo em direção ao Irmão) O que foi que aconteceu?
Irmão
Eu tava brincando com ele daí ele escapou e caiu... O Pai me bateu porque ficou com medo que eu matasse ele. Mas eu só tava brincando.
Host
Mas você precisa tomar cuidado com essas brincadeiras. Já pensou se você mata algum de nós? Hein? Não ia ser bom, não é?
Irmão
Mas eu só tava brincando. Não queria machucar ele. Foi sem querer.
Host
Escuta: às vezes a gente pode machucar uma pessoa, mesmo sem querer. É por isso que a gente tem que tomar cuidado, entende? Para que acidentes não aconteçam, tá bom?
Irmão
Tá.
Host
E como estão as coisas entre vocês?
Irmão
Como assim?
Host
Quero dizer: entre você, o Papai, a Mamãe, o Filho...
Irmão
Estão normais... Porque?
Host
Pai, Mãe... Venham aqui! Vamos ter uma conversa de família. (Todos se aproximam) Como estão as coisas entre vocês?
Irmão
Pai, eu não sei o que ele quer dizer com isso.
Pai
Bem, Filho, as coisas entre nós estão normais... Quero dizer, estamos indo.
Host
Indo para onde?
Pai
Como assim?
Host
Se vocês estão indo, deve ser para algum lugar. Que lugar é esse?
Mãe
Ele está brincando com vocês.
Pai
(Rindo junto com o Irmão) Entendi.
Host
(Sério) Não estou brincando. Quero saber para onde vocês estão indo.
Mãe
Não sei, Filho. Pra lugar nenhum!! Pronto! E pare com essas brincadeiras.
Host
Já disse que não estou brincando. Vocês estão para lugar nenhum, então... E pra que lado é?
Filho
(Apontando qualquer lugar) Ali!
Host
Não.
Pai
Filho, não entendemos o que você está querendo saber...
Host
Eu quero saber o que é que vocês estão fazendo da vida de vocês. Como a estão vivendo. O que têm feito... Vocês não me perguntaram isso? Eu respondi. Agora é a vez de vocês... O que vocês têm feito?
Pai
Entendo... Bem... Estamos aqui, fazendo um piquenique. Sua Mãe preparou. Se soubessemos que você viria, teríamos feito algo melhor.
Host
E da onde saiu essa idéia de piquenique?
Mãe
(Em dúvida)...nós não sabíamos quando você viria e pensamos em fazer algo para nos sentirmos melhores, para que quando você nos visse nós estivéssemos felizes...
Host
E estão?
Mãe
Sim... Agora que você chegou...
Host
E antes?
Irmão
Antes também...
Host
Mentira! Você não estava feliz!
Irmão
Estava sim!
Host
Não. Você estava triste porque tinha apanhado.
Irmão
Mas eu não estava triste com você.
Host
Com quem era?
Irmão
Era com o Pai.
Pai
Comigo! Eu te mato!
Host
Como?
Pai
Ele disse que estava triste comigo... Eu não fiz nada...
Host
Quem deu uma surra nele?
Pai
Foi porque a sua Mãe ficou assustada.
Mãe
Não. Eu não fiz nada...
Host
Porque não fez nada, então? Porque não impediu que o Pai batesse nele e ele ficasse triste?
Mãe
Porque ele tinha que aprender a não machucar o Filho.
Host
Então, para ensinar ele a não machucar, vocês o machucaram?
Mãe
Eu não. Seu Pai.
Host
Então, Pai, para ensinar o Irmão a não machucar, você o machucou.
Pai
Foi.
Host
E se ele tivesse morrido?
Pai
Não morreu. Sua Mãe não deixaria.
Host
E se fosse só por você....?
Pai
Eu nunca teria matado ele!
Host
Você não se importa se ele morrer?
Pai
Lógico que me importo! Por que essas perguntas, meu filho?!
Host
Isso é felicidade pra vocês?
Pai
Lógico que é felicidade, meu filho! Somos felizes sim. Nós te amamos, filho!
Host
Isso eu sei. Mas vocês são felizes, entre vocês?
Mãe
Nós somos, filho. Nós somos...
Host
E agora? Eu deixo vocês felizes com essas perguntas todas?
Irmão
Sim.
Host
Sim?
Pai
Não. Você nos entristece, Filho.
Host
Entristeço? Porquê?
Pai
Porque fica nos acusando de coisas que não fizemos.
Host
E ele não machucou o Filho? E a Mãe, não foi omissa quando você espancava o Irmão?
Pai
Não fale assim com a sua Mãe.
Host
Eu falo como quiser. Falo o que quiser e foda-se.
Mãe
(Enfia-lhe um tapa na cara. O Host fica alguns instantes com a mão no rosto. Chora de alegria.) Desculpe! Desculpe!
Host
Tudo bem.
Pai
Está vendo? Está vendo? Você magoou a sua mãe! Você não se envergonha?
Filho
Mãe! Mãe! (Chorando) Não chora!
Irmão
Isso, Mãe! Não chora não...
Host
Estou indo embora!
Pai
É o melhor mesmo, filho. Sua Mãe, ela....
Mãe
Meu filho! Meu filho!
Host
Adeus! (Sai)
Pai
Volte depois, filho. Ela já estará melhor...
Mãe
Ele não vai voltar mais?
Pai
Ele volta, querida. Para ver como você está.
Irmão
Não chora, Mãe!
Mãe
(Furiosa) Sai daqui, seu filho da puta! Tudo isso é por culpa sua!
Irmão
Mãe?
Mãe
Sai daqui! Você é quem devia ter ido embora!
Irmão
Mas eu não fiz nada!
Pai
Você com essa sua historinha de não ter feito nada!
Irmão
(Para o Filho) Mas a gente só estava brincando, não é?
Filho
(Para a Mãe) Não chora!
Pai
Suma daqui, anda!
Irmão
Não faz isso comigo!
Pai e Mãe
Vai embora!
Cena #10
Irmão
Daí eu saí de lá. Eu fui longe... Longe...
Até a parede.
E eu ficava pensando sempre no que era que eu tinha dito.
O que tinha feito de errado?
Então eu entendi que não importava.
Que tudo o que eu dissesse ia ser entendido de outra maneira.
Que não importava o que eu dissesse e sim o que ele queria que eu tivesse dito.
Olhava para aquele quadro e finalmente entendia que eu nunca tinha feito parte dele.
Que quando ele não estava lá, os outros só amavam uma pessoa.
E não era eu.
Cena #11
O Host está sentado numa escada, pensativo. Chega o Técnico.
Técnico
Que foi?
Host
Não tenho conseguido dormir. Nem me lembro de quando foi a última vez que eu fiz isso.
Técnico
E porque?
Host
Acho que tem a ver com essa vida na gaiola, sei lá.
Técnico
Talvez fosse o caso de você fazer um exame.
Host
Não gosto dos exames. Fico uns três dias sem me entender direito... Eu estou bem.
Técnico
Cigarro?
Host
Valeu.
Técnico
Você chorou no teste hoje. Porque?
Host
Sei lá. Fiquei comovido, acho.
Técnico
Hmmm.
Host
É que ela reagiu que nem gente, sabe? No meio de todas aquelas perguntas estúpidas do teste... e ela me senta um bofete na cara. Foi digno pra caralho.
Técnico
Eles agora se protegem. Zelam um pelo outro.
Host
Medo da morte.
Técnico
Simples assim.
Cena #12
O Filho está sozinho, brincando com uma faca. O Irmão chega. Filho não percebe.
Irmão
Eu fui até a parede, lá longe.
Filho
Você voltou!
Irmão
O que é isso na sua mão?
Filho
(Escondendo a faca) Nada!
Irmão
É uma faca, isso aí?
Filho
Não é nada!
Irmão
Deixa eu ver, anda!
Filho
Não.
Irmão
Mostra! Senão eu conto pro Papai.
Filho
Bobo! (Dando a faca) Tó.
Irmão
Então... Eu fui até a parede mais longe que tem.
Filho
Eu já fui lá.
Irmão
E como é?
Filho
É... (Não sabe)
Irmão
Mentira! Você não foi não!
Filho
Fui sim!
Irmão
Você agora está mentindo, é? Primeiro essa faca, agora essa história da parede! (Filho abaixa a cabeça) Você não sabe que essa faca machuca? Que com ela você pode se ferir? Que pode até morrer?
Filho
Eu sei. Mas eu só estava brincando.
Irmão
É. Mas eu também só estava brincando e eles me mandaram embora.
Filho
É. Mas você voltou!
Irmão
Voltei sim. Só que agora eu não vou brincar. (Blackout. Dessa vez, têm-se a sensação de uma pane elétrica.)
Cena #13
Os dois estão preenchendo alguns papéis e guardando os equipamentos de trabalho.
Técnico
Agora é questão de um mês ou dois até eles poderem ir para o mercado. Essa idéia do medo da morte foi genial.
Host
E melhorar a resposta de erro deles também. Agora, ao invés de simplesmente darem pau, eles se justificam.
Técnico
E mentem, os filhos da puta.
Num outro ponto, o Filho está de costas para o público. Está imóvel, sentado, com o corpo dobrado para frente.
Mãe
Filho! Filho! Vem com a Mamãe, vem!
Pai
Filho! Chegamos!
Mãe
Tá brincando, né? De esconde-esconde...
Host
Ainda dá para perceber quando estão mentindo, mas já é um bom começo.
Técnico
Mas isso é um problema menor. É inofensivo.
Pai
Cadê esse menino. (Fingindo que não o estão vendo) Você viu onde ele se escondeu?
Mãe
Eu não. Mas ele se esconde muito bem.
Host
De tudo, o melhor é vê-los funcionando independentes de mim. Me mandaram embora hoje.
Técnico
Isso me preocupou.
Host
Isso é metáforico, entende? Não significa uma expulsão da própria casa.
Pai
Ah... Então vai ter que dar uma pista! Tá quente?
Mãe
Tá quente, Filho? Responde.
Pai
(Coloca a mão no ombro do Filho e o puxa para trás) Achou.
(Deita o corpo do Filho e percebe a faca enterrada no peito. A Mãe entra em choque. O Pai puxa a faca, mas não consegue arrancar. O Filho grita de dor)
Técnico
Não sei. Por isso acho melhor enviar o relatório final em dois meses.
Host
Um mês. Quer apostar?
Técnico
Dois meses. Além disso, enquanto eles não encontrarem a unidade extraviada, não vão autorizar a saída desse lote.
Pai
Quem fez isso?
Filho
(Abre a boca. Está sem língua.)
Pai
Quem fez isso com você? (Abraçando o Filho)
Host
Puta que o pariu! Tinha me esquecido dela. Nada ainda?
Técnico
Nada.
Host
E o rastreador dela?
Mãe
Ele vai descobrir. Ele vai pensar que fomos nós.
Pai
Ele está morrendo.
Mãe
Vamos esconder.
Técnico
Eu tinha desligado...
Host
Porquê?
Pai
Vamos pedir ajuda.
Mãe
Para quem?
Pai
Vamos... Alguém vai nos ajudar.
Mãe
Não adianta. Não podemos fazer nada. Não podemos fazer nada. Não adianta.
Técnico
Porque senão a engenharia ia descobrir que eu... Você sabe...
Host
Deixa pra lá.
Técnico
Eles acham que foi ela quem desligou o rastreador, e isso é o que vale.
Técnico
Ei... vem cá...
Host
Que foi?
Técnico
Olha isso. (Aponta na direção do Filho)
Host
Puta que pariu! Aconteceu alguma merda! Estou descendo. (Vai em direção aos três)
(Toque de campainha)
Mãe
Chegou!
Pai
Que fazemos?
(Toque de campainha)
Host
Mãe... Pai... Sou eu... Abram!
Mãe
Já vai, Filho! (Para o Pai) Tire a faca do peito dele, anda!
Host
Abre, Mãe!
Mãe
Já vai! Já vai! Onde foi parar essa chave!
Pai
Vou procurar! (Vai em direção ao Filho e fica tentando arrancar a faca, sem sucesso)
Host
Abram logo... O que está acontecendo aí dentro?
Mãe
Nada. Nada. Eu só perdi a chave da porta.
Pai
Estou quase achando. (Como não consegue retirar a faca do corpo do Filho, esconde-o)
Mãe
Ai que boba que sou! Estava aqui o tempo todo. (Abre)
Host
(Procura pelo Filho no lugar aonde ele estava) Cadê o Filho?
Mãe
(Olha para o Pai) Saiu.
Pai
Com o Irmão.
Mãe
Isso. Os dois... Estão... Brincando...
Host
Não. Não estão. Vou perguntar mais uma vez... Onde está o Filho?
Pai e Mãe
(Fazem um jogo estúpido e ficarem se olhando e em seguida olhando para o Host, sem saber o que dizer para agradá-lo) Não fomos nós.
Host
Não foram vocês, o quê?
Pai
(Apenas aponta para o lugar onde escondeu o corpo do Filho) Isso.
Mãe
Não fomos nós.
Host
(Revela o corpo do Filho. Vê a faca) Puta que pariu! Manutenção: reiniciar!
Mãe
(Para o filho) Filho, não fomos nós, não é?
Filho
(Balança a cabeça negando)
Pai
Viu? Não fizemos isso.
Host
Manutenção! Já disse! Reiniciar!
Pai
Ele vai ficar bem?
Host
Reiniciar, Caralho!
Ouve-se um ruído e surge a Amante. Ela surge sendo carregada nos ombros pelo Irmão. Eles arrastam o Técnico, que está exposto como uma ergocriatura.
Amante
Senhoras e senhores: o homem fictício.
(Apresenta o Técnico)
Sua existência era limitada à impressão dos outros.
Não lhe fosse determinada a essência, passava a inexistir.
Era um reflexo das impressões alheias.
Uma estatística disforme de um homem provável.
Host
O que vocês fizeram com ele?
Amante
(Como se falasse consigo mesma) E agora? O que eu respondo? Será que uma mentira dizendo uma mentira é verdade? Ou mentira? Menos com menos dá mais; ou menos? Digo UM ou digo ZERO?
Irmão
A gente viu o que ele é mano. A gente viu isso!
Amante
(Continuando a história) Queria sair da sua condição plural... e simultaneamente NULA... para uma originalidade, que lhe era assustadora... Mas ao menos lhe era excitante a possibilidade de ser diferente do que era.
Irmão
Ela disse que veio do lugar onde ficaram as nossas memórias. Ela encontrou o que nós somos. Encontrou a verdade. A verdade, mano!
Amante
Esforçava-se para ser e no entanto... continuava não sendo. A cada passo que dava ao seu encontro, mais se afastava de si. A sua essência sempre lhe escapava.
Irmão
Nós não podemos morrer. Entende? Nós não podemos morrer!
No começo ela disse isso, mas eu duvidei.
Daí, ela me enfiou uma faca no peito...
E eu não morri.
Amante
A angústia de não existir, passou a lhe conferir forma! Mas ainda era um vazio... esperando ser... alguma coisa... (Pausa)
Criou-se nele um conflito inexistencial.
(Bate palmas)
Irmão
Então eu pulei do precipício. E quando eu cheguei no fundo, ví que eu não tinha morrido.
Amante
Aí eu falei assim: Agora vá lá e diga ao teu irmão que ele é imortal.
Irmão
E então eu enfiei a faca nele.
Filho
E eu vi que não tinha morrido.
Host
Vocês estão com problemas! É um erro! Um pau no programa de vocês!
Pai
Quer dizer que não podemos morrer?
Mãe
Eu nunca vou ter câncer?
Pai
Nem vou ter alzheimer?
Mãe
Nem vamos enfartar.
Amante
Não. Ninguém pode morrer. Nenhum de nós.
Mãe
O que nós somos?
(Ouve-se apenas a voz em off. Numa tela, as imagens dos atores são projetadas.)
Audio
Porque você quer fazer parte da Evergreen?
Audio Mãe
Porque eu quero ser uma pessoa melhor. Uma mãe melhor para os meus filhos...
Mãe
Então eu posso ser atingida por uma bala. E não vou morrer?
Audio Pai
Eu acho que a Evergreen pode me fazer uma pessoa melhor.
Pai
E eu posso ser linchado? Nada vai acontecer?
Audio
Você aceita fazer parte do programa de aprimoramento genético da Evergreen?
Audio Host
Sim. Quanto eu vou ganhar por isso?
Host
Mentira!
Audio Filho
Eu queria não ficar doente. Nunca mais.
Filho
Eu vi que eu nunca ia crescer. Que eu não ia ficar velho nunca.
Audio Irmão
Vocês podem tirar o sono também? Eu queria ficar sempre acordado. Para aproveitar mais a vida.
Audio Amante
Eu acho que não ia suportar ficar velha...
Amante
Eu vi que a AIDS não podia me matar. Nem a Gonorréia, a Sífilis... Que eu podia trepar o ano inteiro que eu nunca ia morrer.
Audio
Você entende que com esse contrato, você está cedendo os direitos de seu corpo para a Evergreen?
Audio Host
Se isso for para me fazer uma pessoa melhor, porque não?
Host
Não.
Audio
Durante o período da experiência, você pederá o contato com todos os seus entes queridos.
Audio Técnico
Vocês podem me fazer menos barrigudo?
Audio
Poderão ocorrer perdas seletivas de memória e outros efeitos colaterais.
Audio Host
Tudo bem.
Host
Não.
Audio
Você entende que com esse contrato, você está cedendo os direitos de seu corpo para a Evergreen?
Host
(Responde acompanhando o Audio em Off) Sim.
Audio
Bem vindo a Evergreen. Dirija-se ao corredor à esquerda para iniciar a experiência.
Host
(Gargalha e por fim, entra em pane)
FIM