segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Corporativo



Quebro a cabeça para tentar escapar dessa armadilha implacável, que nos marca a ferro e fogo. Sem muita resolução concedi à máquina meios para que me encontrasse, mas continuo à parte dela, para estranheza de parentes e amigos.

A esses eu digo: se eu supostamente colocasse minha mente e minhas capacidades à serviço deste aparelho, acaso alguém poderia me deter? Se eu pretendesse investir minhas energias, para alimenta-lo, com que vigor ele funcionaria?

Mas eu não pretendo. Me manterei à parte dele, estudando-o. Procurando formas de vencê-lo.

Uns já teriam me acusado de soberba. Outros diriam que é mais uma das minhas piadas. E aguardariam até que chegue o momento em que eu precisasse levar a vida a sério. Mas será preciso?

Não farei concessões. Não me tornarei um espelho, para que essa máquina se reflita, confundindo-se comigo mesmo. Não fingirei ser ela, nem assinarei acordos que logrem transformar o falso em verdadeiro.

Não venderei seus utensílios, nem suas idéias, nem o seu consentimento fabricado.

Não arriarei as minhas calças, esperando o sucesso ou ouro.

Lutarei até o final das minhas forças, e vencerei a máquina.

Mas não nos seus termos.

Contraporei a sua capacidade de me enfraquecer à compreensão clara das minhas capacidades. Oporei o seu desejo de que eu seja uma função, para me tornar todas as funções que eu desejar. Serei um inútil para a máquina, porque sou um homem, não uma peça no seu funcionamento.

Libertarei meu tempo da sua tirania.

Mas não estarei sozinho, como pretende o aparelho. Não serei seu bufão.

Me unirei a outros e nos alastraremos, elucidando a outros mil o seu funcionamento.

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Um deserto - Dia 5

Não acordei no quinto dia. Achei que era o sexto ou o sétimo.

O deserto cansava-me.

O assassinato cansava-me.

O sol cansava-me.

A boca estava toda fodida e isso acabava com meu passatempo favorito que era o de ralhar.

"Que se foda" - pensava, sem poder dizer. Atirei ao longe o que restara do meu assassínio.

Havia uma inutilidade naquilo tudo que me irritava profundamente.

"Porque diabos me meti aqui? Que queria eu com isso?"
Perguntava-me e em silêncio me ignorava.

Nem mesmo o cajado me era companhia. Agora eu pretendia me livrar dele, para não macular minha memória com o assassinato de um cacto paralítico.

"Se eu andasse, para onde iria?" Perguntei-me, quebrando o cajado.

E o deserto zombava de mim estendendo suas garras em brasa por sobre o meu corpo.

"Não vou sair daqui. Se há um deus, vou achá-lo."

E minha busca começou, não por esperança ou fé.
Por teimosia e raiva.

E apertei o passo, sem rumo, invadindo as areias.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

O governo me surge com um referendo sobre o desarmamento. E generosamente nos dá a oportunidade de escolher entre duas opções: se queremos que o Estado nos mate, ou se nos mataremos uns aos outros. A isso se resume a nossa capacidade de interagir com ele.

Não sou favorável às armas. Tenho a forte convicção de que a arma é o instrumento que o covarde usa para fazer valer a sua vontade sobre a dos demais. Daí decorre, evidentemente, que o Estado é a arma mais eficaz já inventada, porque permite que a aristocracia faça valer a sua ganância por cima da miséria da maioria. Sem que precise apertar o gatilho. O crime perfeito.

Voto a favor do desarmamento, pretendendo ir além das armas de fogo, que são o tema em questão. Voto pelo final de todas as armas. Pelo encerramento dessa cultura de violência, de egoísmo, de impotência, de medo. Voto pelo final desse culto ao sofrimento, desse elogio da vítima. Pelo final desse sistema em que o supremo herói é um garotinho mimado que faz com que o mundo inteiro limpe o bidê em que ele defecou erroneamente, pensando se tratar da privada.

Dirão que sou um sonhador e acharão belas as minhas palavras, guardando-as para um futuro utópico, mas não possível. Dirão ainda que é preciso me salvaguardar com relação ao meu vizinho, porque ele pode roubar o que possuo (que é tão pouco). Que devo me municiar preventivamente, para evitar que levem o pouco que possuo.

Mas efetivamente, quem é que leva todos os dias, o pouco que possuo? Quem é que me rouba rotineiramente, sob os mais diversos pretextos? Quem me obriga a ingressar todos os dias numa ciranda infinita de envelopes que se somam, e que subtraem de minhas economias o dinheiro que ganhei com o meu trabalho? Quem é que me rouba a poesia e que me obriga à venda do invendável? Quem é que me subtrai a vontade e compactua para que eu persista em temer o meu semelhante? Quem é que me compra inteiro, paga a metade e me vende pelo dobro?

O resultado dessa equação é sempre o mesmo: o Estado. E o dedo no gatilho daqueles que o possuem, os Aristocratas, nas suas infinitas representações.

E enquanto nos debatemos, escolhendo entre o sim e o não, a Aristocracia vai fazendo os seus conchavos. Sim, porque não nos esqueçamos que há um inquérito envolvendo ministros, deputados e empresas de todo tipo. Lobbies, espionagem, lavagem de dinheiro, assassinatos. A Aristocracia chafurdando no seu Estado de merda. E roubando o nosso dinheiro, enquanto acusam o nosso concidadão de ser um marginal, porque roubou um banco, ou uma casa.

Quantas casas o Estado e os Aristocratas nos roubam por hora? Quantos bilhões nos roubam os bancos? Quantos destes renomados assaltantes do povo foram parar nas garras da justiça? Dois? Três (me esqueço do Juiz Lalau... Aliás, o que é dele?)

E então surgem eles com essas manobras de sempre. Ora nos dão a chance de votar em qualquer coisa. Ou nos dão de presente uma fundação qualquer, para resolver os problemas que o Estado não resolve, tomando o lugar das nossas livres associações. Ora publicam mentiras em suas revistas e jornais. Ou criam fantasias em suas emissoras de TV que nos levam a votar naquilo que eles desejam que votemos. E a nossa participação na sociedade se resume em trabalhar e pagar contas. Trabalhar para que o Estado e as Empresas a ele ligadas nos roubem todos os dias. Nos vendam mentiras.

Não estou pondo em cheque a validade do referendo, como mecanismo de participação popular. Mas porque não criam canais para que nós decidamos o que deve ser referendado? Porque não nos permitem opinar sobre outras questões importantíssimas, como a distribuição de renda, a dívida externa, ou uma lei de responsabilidade política que nos permitisse demitir os políticos que nos atraiçoam depois das eleições?

Porque não nos permitem terminar com essa última arma que é o Estado?

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

CATARSE

Nunca gostei de ninguém que ache que é chefe. Meu chefe. Ou de outros. Odeio os reis.

Acho que temos que pegar o mundo pelas rédeas. Todos juntos. E dividir igualmente tudo.

Não tem trabalho que valha mais que o outro. Não tem ser humano que valha mais que outro.

Não recolho merda de cachorro em sacolinha enquanto passeio pelas ruas.
Não calço sapato em cachorro, nem passo perfume no cu de um poodle.
Odeio shopping centers. E os odeio mais ainda quando vejo um pivete fora e um cachorro dentro.

As dondocas me irritam facilmente. As velhas do Futurama também. Peido em todas.

Odeio os reaças me mandando mensagens a favor das armas, falando que a bandidagem vai descolar armas ilegais, porque eles conseguem trazer qualquer merda de contrabando.

Porque os reaças vão a Miami e trazem suas pistolinhas do FBI. Blindam seus carros e dão tiros para o alto quando estão bêbados à noite, porque viram essa merda num programa americano de tv a cabo.

Odeio quando nós brasileiros falamos do brasileiro como se fosse um outro.
Ou quando alguém diz: "o povo" do meu lado.
Porque quando alguém diz "povo" é como se ele fosse um "rei" e como eu já disse, eu odeio os reis.

Não compro roupa com marca estampada, porque não sou escravo para andar marcado. Arranco as etiquetas de tudo. Que me paguem se querem que eu faça propaganda!

Odeio a Daslu. E suas muambas caras. E as filhas da elite trabalhando de balconistas, porque precisam aprender a dar duro. Que vão trabalhar num farol, fazendo malabares, distribuindo panfletos ou limpando para-brisas.

Odeio trote do Mackenzie, da Faap, da PUC, da USP. Odeio qualquer um pedindo minha grana no farol pra ir tomar cerveja, porque passou no vestibular. Porque esse não dá grana pros pivetes do farol, porque acha que eles vão comprar cola pra cheirar. Nem dá grana pros mendigos, para eles não comprarem cachaça.

Odeio o Jô Soares, mas odeio mais ainda quem acha que o gordo é tudo.
Porque nunca viu o programa americano que ele copia igualzinho.

Odeio as Vacas Pintadas na Paulista e na Oscar Freire.
Vamos pintar mendigos para ver se as pessoas prestam mais atenção neles.
Vamos nos vestir de vacas, para ver se nos olham como pessoas.

Quero que o Bush se foda!
E com ele o FMI, a OMC, a Coca Cola, a Nike e todas as corporações do mundo, que chupam a nossa energia e dinheiro, escravizam nossas mentes e braços e ganham uma puta grana com isso.

Estamos nos organizando, seus filhos da puta!
E vamos acabar com essa palhaçada antes que vocês se dêem conta!

Hidra de Lerna

Se lhe corto uma cabeça, pagando o que lhe devo, quando abro a minha caixa de correio, encontro outras mil. E se novamente as corto, outras surgem.

E não surgem em silêncio, senão que em uma balbúrdia infernal, me propondo benefícios para que outras cabeças possam ocupar mais espaço.

E se aceito esse arranjo, perco a cabeça.

sexta-feira, 29 de julho de 2005

Quasímodo

O sineiro estava diante deles, capuz baixo, tentando esconder a enorme corcova.

Diziam:
"Esse é polígono mais torto que já foi desenhado".
"Isso em baixo do capuz, é a cara ou o traseiro?"
"Se for uma coisa, não quero ver a outra".
"Se esse é o filhote, fujamos da cria adulta".
"Se isso é o mais certo disso, fujamos do errado".

O sineiro não apreciava a poesia.

Era surdo.

Chegança III

Alguém veio e disse:

"Separa o canto deles do nosso".

Antes era um canto só.

"Cerca. Divide assim: a montanha é deles. O rio é nosso".

Mas o rio era dele mesmo.
E a montanha, sairia da cerca
sem que ninguém se desse conta.

Depois traçariam linhas, cercando as cercas que não podiam cercar.
E disseram que uma linha era a frente.
A outra atrás.
E outras mais de cada lado.

Quadraram seu mundo e lá ficaram.
Além da borda, o infinito.
Ou o fim do mundo.

Mágica

Parece que vêm até aqui e nos olham
como se estivéssemos fazendo alguma
mágica e então eles se perguntam de
que cartola nós tiramos tanta felicidade.

Chegança II

Eu já gosto de ficar olhando para as gentes
e ficar achando as parecenças.
Aquele é tio Vitor.
Aquele outro é Chico Moço.
Lá longe, Dona Dadora mais seu Alfredo.
Acolá Lucas, Pedro, João, Mateus...
E seu Tomé na frente deles.

Chegança I

Quando eu chego num lugar novo,
tiro as sandálias e bato uma na outra...
Pra sair a poeira, sabe?
Poeira do que já foi.

Daí eu pego as sandálias
e raspo na terra do chão.
E banho elas na água
e raspo de novo.

Que é pra ficar impregnado do agora.

sexta-feira, 15 de julho de 2005

Funcionar ou Viver

Tinha ido conversar com ele porque achava que estava com algum problema que fazia com que não funcionasse direito. Achava que a vida estava se esvaindo sem que tivesse feito nada de significativo.

- Pare de funcionar e viva.

- Se eu parar de funcionar, morro.

- Eu já não funciono.

- E como vive?

- Vivo pelos meus meios.

- Eu também vivo. Mas ganho pouco com isso.


- Então não vive. Você apenas funciona.
É preciso deixar de funcionar para viver.


O outro apenas riu. Mediu o sujeito de cima a baixo e pensava que estava diante de alguma criatura rara. Uma esfíngie, talvez.


- Você pode escolher entre funcionar ou viver.
Não se pode ter os dois ao mesmo tempo.
Se escolher a vida, estarei aqui para ajudá-lo.
Mas, se você escolhe funcionar... não posso consertar isso.
Porque perdi a crença na máquina.

...

quinta-feira, 14 de julho de 2005

Reformas

Um reformador, ele era.

Achava que o mundo era uma máquina quebrada cujo funcionamento ele a muito havia desvendado. Todos os esquemas, toda a mecânica, todas as possibilidades, tudo...

O que ele sabia, sabia.

O que não sabia, sabia que saberia.

E assim seguia.

Se lhe perguntavam o que estava fazendo, ele interrompia sua longa cadeia de raciocínios e observava o inquiridor.

Sabia que sabia o que o outro queria saber e engrenava uma longa série de elocubrações e sentenças explicando toda a mecânica do cosmos, da forma mais simples que poderia conceber, rica em metáforas e alegorias, repleta de jogos de lógica e de um certo tempero irônico ao que o outro redarguia com um QUÊ? que ele logo respondia com outra série de raciocínios até que soubesse que, de fato o outro sabia.

E seguia reformando, ainda que abandonasse o outro com um QUÊ? ainda maior e mais confuso.

Não suportava a ajuda de outros, é claro. Porque a cada parada explicatória a máquina do mundo se complicava, e sua função lhe obrigava a agir.

De modo que seguia reparando tudo atinar que estava cansado.

Então mudava de lado e ia consertar algo noutra parte, sem perceber que ficava só. E que a tarefa a que se propunha era colossal.

Que o cansaço o fosse massacrando, tudo bem.

Mas lhe sobrevinha uma irritação constante com a incompreensão. na sua cabeça, os outros eram peças da máquina cuja direção ele revertia ao explicar o mundo e seu funcionamento correto.

Ou ainda, o outro era a ferramenta que ele usava para consertar tudo.

Bem... Seguiria assim.

Mas um dia compreendeu sua própria mecânica e então se irritou, porque se achava mais humano que os demais, que eram para ele autômatos.

Se soube máquina. E isso era um defeito.

Engrenou então um reformismo de si. E se fechou para balanço. Era preciso se humanizar.

Mergulhou no labirinto de sues raciocínios e começou a ter vários QUÊS a seu respeito.

E ia e se julgava e se reformava e não conseguia e se asfixiava e perdia e seguia e ia, ia, ia...

Não foi pela SUA longa série de raciocínios que ele chegou ao entendimento de que só reformaria a máquina do mundo se reformasse a si mesmo e ensinasse a outros a mesma coisa. Se ensinasse a reparar o que havia ensinado, ensinando uma direção nova, que era ensinar o outro a ensinar que o mundo poderia ser menos mecânico e mais humano.

E avançando nisso, se humanizou, humanizando a outros.

E o mundo não precisou mais de conserto.

Porque não era uma máquina.

domingo, 5 de junho de 2005

Um BO que encontrei

Anotações sobre o dispositivo proposto pelo indivíduo nº. 0550445, chamado “Messias”.

Capacidade de armazenamento de 840 terabytes, conjunto de 2178 winchesteres. Unidade de processamento, desconhecida. Possivelmente um amálgama de diversos processadores, funcionando paralelamente.

Cinco assentos de barbearia, dispostos em estrutura de pentagrama, com símbolos cabalísticos inscritos. Sobre cada um dos assentos, capacetes de ciclista, com eletrodos em vários pontos.

No centro desta estrutura, um transformador do tipo residencial, para bairros com mais de 5 mil habitantes. Abaixo da estrutura, manchas de gordura e sangue. Alguma poeira, possivelmente cinza humana.

Diversos monitores exibem imagens que não parecem provir de nenhuma emissora de TV conhecida. Os fiéis dizem que são imagens do paraíso. Verificar a procedência de emissões clandestinas na região.

Não há indício de interface alguma. Sem botões, teclados ou mouses. O funcionamento do dispositivo parece estar associado às placas implantadas no corpo do “messias”.

Não foi apurado se o dispositivo realmente funciona.

Um fato urbano e concreto

Existe uma seita secreta, entre os catadores de sucata, cujo messias preconiza uma salvação que virá dos circuitos eletrônicos.

Tais catadores resgatam dos lixos as sucatas de eletrodomésticos e as levam para algum lugar secreto, nos subterrâneos da cidade, onde habita o messias.

Este homem, de uma capacidade sobre-humana, reúne os circuitos aproveitáveis em tais aparelhos na esperança de construir um dispositivo que transportará as almas de seus fiéis ao paraíso.

A máquina, segundo dizem, tem mais de oitenta metros quadrados de área e está prestes a ser concluída. Alguns dos fiéis catadores de papelão foram sacrificados nos incontáveis testes do dispositivo de transporte.

Conta-se ainda que o corpo do messias é repleto de placas de circuito impresso, de finalidade desconhecida, que parecem se alimentar do próprio corpo messiânico. As más línguas dizem que o messias não estaria vivo se não fossem tais placas. Mas os fiéis acreditam que ele é que alimenta os dispositivos, que com certeza, devem ser os controles da máquina.

Alguns dos catadores de papelão também usam dispositivos anexados às suas roupas e corpos, mas falta-lhes o conhecimento para fazer com que funcionem empregando a energia contida em seus corpos. Neste caso, os dispositivos são apenas fetiches, amuletos. Ou ainda, indicadores da filiação destes catadores.

Não se trata de uma organização política, propriamente. Não há indícios de que a mensagem do messias seja de cunho revolucionário. Vivem em seus subterrâneos, executando suas tarefas rotineiras. Eles são os invisíveis, que se aproveitam das tralhas da sociedade. Ninguém parece se importar muito com eles. São apenas tralhas entre tralhas.

Também não se viu tais homens pregando a sua fé, à maneira dos fiéis de outras seitas. Parecem não se importar com a salvação alheia. Movem-se silenciosamente na superfície da cidade, revirando lixos à procura das peças que faltam ao estranho quebra-cabeça criado por seu líder. Não possuem nenhum ritual de adesão, a não ser a desgraça em que vivem.

Parecem inofensivos, exceto num aspecto: “Como se deu que uma tal organização florescesse em nossa cidade sem que nós sequer percebêssemos?”

Teorias da Relatividade

São tão diversas as idéias do ser humano sobre o mundo que o cerca, que em qualquer contexto, podemos ficar horas e horas divagando sobre estas diferentes percepções. Há a percepção do que seja deus. Há a percepção do que seja a verdade universal. Há a percepção do bem e do mal. Há a percepção da justiça. Há a percepção do que é um bom futebol ou de qual é a melhor religião. Ou a de que determinada política é melhor que outra.

Não é que o mundo tenha se tornado complexo demais ou então o homem. O que ocorre é que as justificativas para o nosso sofrimento se tornaram cada vez mais elaboradas. A ilusão está se tornando cada vez mais refinada em seus argumentos.

E este relativismo permite que um homem faça outro sofrer, embora ele mesmo não deseje o sofrimento. O relativismo cria as justificativas para que um homem seja vendável e o outro não; para que uma vida humana tenha o seu preço; para que homens se tornem coisas que fazem coisas.

Podemos nos sustentar neste relativismo quando desejamos a solidão. Se o outro pensa o mundo da sua forma e eu da minha, que cada um fique no seu canto e não perturbe o outro. Só tornaremos a nos encontrar quando tivermos utilidade um para o outro.

O combate entre homens também se apóia nisso. Você é o mal para mim e eu o sou para você, portanto combatemos. Você quer as minhas terras e os meus recursos. E eu quero explorá-los para depois explorar você através da venda destes recursos, por valores relativos, que eu determinarei segundo idéias também relativas. Você pretende me convencer de que a sua relatividade é melhor que a minha e por isso usa armas que vão me convencer, ou exterminar.

Está claro que os relativismos não vão nos conduzir a nenhum ponto, como espécie. Eles estimulam o individualismo crescente no mundo que nos cerca. Alimentam a subjetividade individual com promessas de que teremos todos os nossos desejos satisfeitos se nos esforçarmos o suficiente. Nos dizem que existem produtos perfeitos que atendem as nossas carências e quanto mais nos esforçarmos, seja trabalhando árduamente, explorando o trabalho de outros ou roubando com fervor, teremos mais recursos para finalmente podermos usufruir da felicidade individual. Oferecem-nos o direito de sermos énicos, mediante a exclusão psíquica de todos os outros; mediante a negação de toda intencionalidade que outros possam ter.

Que centro de ação podemos achar num mundo que se configura desta forma?

Se o relativismo se configura como um emaranhado de opiniões desconexas do ser humano sobre o mundo que o cerca, aonde está o centro disso? No ser humano, é claro.

Naquele cujo maior projeto, em todas as formas que se configure, é evitar o sofrimento e atingir a felicidade. Sabendo é claro que isso não é um projeto individual e sim o projeto de toda uma espécie buscando a evolução, um outro patamar.

Se não deseja o sofrimento, não faþa outros sofrerem por isso, porque o refluxo desta contradição lhe trará mais sofrimento. Trata os outros como você gosta de ser tratado. Em ambos os casos, o centro é ser humano, em busca da superaþão do sofrimento. Não há outra idéia aí.

E que os relativismos sejam bem vindos, como manifestação da diversidade. O que nos faz énicos, não precisa nos fazer sós. Se temos algo em comum, que compreendemos ser a aspiração de superar todas as dificuldades que nos colocam nesta teia de sofrimento, a sua perspectiva distinta da minha pode me enriquecer e me fazer crescer.

E assim, caminharemos para uma nação humana universal.

sexta-feira, 1 de abril de 2005

3RG0NôM1C4 - Um projeto da Evergreen

Personagens:

Mãe
Host
Pai
Irmão
Filho
Amante
Técnico

Dedico esse trabalho aos companheiros do V-Uha (Vermelho Útero há), à Batephubà (Cia Bastarda de Teatro Plástico e Humorismo Batráquio) e à minha esposa Claudia Pucci.

Cena #1

Ambiente: Uma sala de jantar absolutamente branca. Todos os utensílios dão brancos e os personagens vestem roupas brancas. Preparam um jantar, cada um desempenha uma função no preparo. As relações são silenciosas e harmoniosas. Toque de campainha.

Mãe

Chegou!


Todos se arrumam. A mãe abre a porta. Entra o Host, vestindo um uniforme Evergreen.

Host

(Seco) Oi mãe.

Mãe

Você deve estar morrendo de fome, filho?

Host

Pior que não.(Irônico) Eu já almocei hoje. Aliás, eu almocei sete vezes, até agora...

Mãe

Você não quer comer?

Pai

Nós fizemos o seu prato predileto.

Mãe

Seu pai ajudou a fazer.

Pai

Coma, só um pouco...

Host

Não. Estou cheio, obrigado.

Mãe

Vamos guardar na geladeira, para o caso de você ter fome mais tarde. O que acha?

Host

Por mim, pode jogar fora.

Irmão

(Chamando-o de canto) Eu também odeio essa comida... E aí, como foi o trabalho?

Mãe

(Jogando fora a comida) Você quer que eu prepare o seu banho?

Host

Não vou tomar banho. (Para o irmão) O trabalho, foi uma bosta, como sempre. As malditas máquinas dão pau o dia inteiro. Temos que reiniciar sempre.

Filho

Papai, vamos jogar videogame?

Host

Digamos que é como se eu já estivesse jogando.

Filho

Não entendi.

Host

Não vou jogar agora. Mas você pode jogar sozinho, se quiser.

Irmão

Deixe que eu jogo com ele. É isso o que você quer?

Host

Isso. Vai jogar com ele.


O irmão vai para um canto jogar com o filho.

Pai

Se quiser algo, é só dizer...

Host

(Olhando-o de cima a baixo) Sim. Eu quero uma coisa...

Pai

O que?

Host

Vai pegar o jornal!

Pai

Jornal? O que é isso?

Host

Uma piada... Eu queria ver as notícias de hoje.

Mãe

Você devia relaxar mais, meu filho... Tão preocupado... Tão estressado... (Massageando os ombros dele).

Amante

Eu cuido disso... Vem cá, deixa que eu cuido desse corpinho maltratado...

Host

Eu estou bem... Não preciso disso...

Amante

Ah... Você não quer que eu te massageie, né? Quer uma chupadinha, quer?

Host

Não. Obrigado.

Amante

E uma punhetinha, você quer?

Pai

Isso vai ajudar você a relaxar.

Host

Não! Eu não quero chupeta nem punheta! E se eu quisesse isso, vocês dois, seus idiotas, deveriam se retirar para outro lugar, entenderam?

Amante

Gente! Ele não gosta que fiquem espiando a punhetinha dele, entenderam? Vão lá pra dentro e deixem que eu cuido dele!

Host

Já disse que não preciso disso!

Pai

Eu e sua mãe estamos de saída... Vamos deixar vocês dois a sós... Você ainda quer ver as notícias?

Host

Não.

Amante

Quer trepar?

Host

Não.

Amante

Quer conversar?

Host

Não.

Amante

O que você quer então?

Host

Quero que você se foda! Aliás, quero que vocês todos se fodam!

Mãe

Porque você está dizendo isso?

Pai

Nós fizemos alguma coisa de errado?

Filho

Posso parar de jogar videogame?

Amante

Como você quer que eu me foda, hein? Assim? Assim? Assim?

Mãe

Que foi, meu filho?

Pai

Você não quer comer?

Mãe

Isso! Nós fizemos a sua comida preferida!

Irmão

Eu odeio essa comida. Mas posso gostar, se você quiser...

Amante

Eu estou me fodendo! Bem gostoso! Vem aqui me foder, vem!

Irmão

Olha, isso é que é mulher!

Pai

Vai lá, filhão, fode ela!

Mãe

O importante é a gente ser feliz!

Irmão

Que mina legal essa sua!

Host

Fodam-se! Eu não quero porra nenhuma de vocês! Quero que vocês se fodam!

Mãe

Não entendo. Nós fizemos a sua comida preferida!

Pai

Você ainda quer ver as notícias? (pega o jornal)

Mãe

Onde foi que eu errei?

Pai

Quem quer ler o jornal?

Mãe

Onde foi que eu errei? Eu errei? Onde foi? Onde foi que eu errei? Onde? Ali? Aqui? Lá? Onde? Onde foi?

(Crash. Blackout.)

(Toca a campainha.)

Mãe

Chegou!

Filho

Papai! Papai!

Host

Oi mãe... (Acaricia o Filho) Tudo bem? (Para a mãe) Que tem hoje pra comer?

Mãe

O seu prato predileto!

Host

Que ótimo!

Pai

Vem cá filho. Papai quer conversar com você.

Filho

Comigo?

Pai

Não. Com ele.

Host

(Obedecendo) Que foi, Pai?

Pai

Tô te achando muito abatido. Que é que foi?

Host

Muito trabalho. Tô cansado de ficar fazendo sempre a mesma coisa todo dia.

Pai

É assim mesmo filho. Trabalhar é isso mesmo. Você devia praticar algum esporte, se divertir mais, entende? Tem que ter o espaço pro lazer. Senão a gente só trabalha e trabalha e fica com essa sensação de que a vida está passando e a gente não está vivendo.

Host

O senhor tem razão. Obrigado, pai.

Mãe

Olha a panqueca!

Filho

Êba! Eu quero duas!

Host

Eu também!

Mãe

Tem pra todo mundo!

Amante

(Chegando) Vê se não enche a barriga, hein. Eu tenho uma coisinha pra te dar depois.

Host

Hmmm. Que gostoso!

Amante

Tá falando da panqueca? Ou da coisinha que eu vou te dar?

Host

Dos dois.

Amante

Ai que delícia!

Host

Boba. Te amo, viu?

Amante

Me ama? Por que?

Host

Porque sim, ué. Que boba...

Amante

(Não entendendo) Me ama porque sim?

Host

É.

Amante

Porque “porque sim”?

Host

Porque porque porque sim.

Amante

Porque porque porque porque sim?

Host

Porque porque porque porque porque sim.

Amante

Porque porque porque porque porque porque sim?

Filho

Porque porque porque porque porque porque porque sim, sua burra!

Host

Não fala assim com ela.

Irmão

Vem cá menino. Pede desculpa.

Filho

Desculpa.

Amante

Porque porque porque porque porque porque porque porque sim?

Host

(Tentando acalmá-la) Pronto... pronto... vai passar.

Amante

A gente vai trepar agora?

Host

Calma, sua boba... Calma. Passou. Passou...

Amante

Vamos trepar?

Host

É por isso que eu te amo, sabia?

Amante

Não... Eu não sei o que fazer com isso... A gente vai trepar agora?

Host

Não. Agora vamos jantar, tá bom?

Irmão

Isso. Vamos jantar. Depois vocês resolvem esse assunto.

Amante

Tá.

Host

E ve se não enche a barriga, hein? Tem uma coisa que eu quero te dar depois.

Amante

Ai que delícia!

Host

O que? A panqueca?

Amante

Não. A sua coisinha. Posso chupar seu sorvete?

Host

Depois do jantar.



(Ouve-se um som agudo ou vê-se um jogo de luzes. Após isso. Todos, menos o Host, ficam neutros e parados. Blackout)

Cena #2

Estão o Host e o Técnico. Arrumam as suas coisas nas valises e se preparam para sair.

Host

Estou cansado dessas máquinas.

Técnico

Qual é o problema?

Host

Não sei. O regulador somático, entende. Parece muito duro.

Técnico

Eu fiz alguns ajustes no ciclo emotivo, mas mesmo assim, Lilith entrou em loop.

Host

Eu ainda acho que o software deveria emular mais papéis. O problema não é o circuito do regulador somático. É o programa.

Técnico

Isso já foi debatido no departamento de engenharia de software. É uma limitação necessária e momentânea.

Host

Bem, se isso é realmente necessário, deveríamos investir nas saídas de erro. Aquela demonstração da mãe hoje, foi patética. E Lilith deu uma resposta de uma criança de três anos.

Técnico

Também achei. Enviei os dois arquivos para a engenharia. Sugeri uma reestruturação neste circuito de resposta.

Host

Qual a sua idéia?

(Blackout)

Cena #3

Amante

Ele disse que tinha me comprado. Que eu era coisa dele. Que ele podia fazer comigo o que quisesse. Eu achei que ele tava falando de sacanagem, mas aí, ele foi até o quintal e voltou com o machado. Eu fiquei com medo... Achei que ele ia enfiar o cabo no meu cu. Aí ele falou que já tinha feito isso comigo. Que o barato dele era esse. Que ele tinha me comprado só pra me matar todo dia. Porque ele tinha raiva dessa perfeição toda. Porque ele odiava que eu ficasse o tempo todo querendo agradar ele. Que o único jeito de eu agradar ele era morrendo sempre e sempre.
Daí ele veio com o machado e começou a me arrebentar inteira. Então eu gozei.

Aí ele ficou louco: disse pra eu gritar que estava com medo, pedir pra ele não fazer isso.

Mas eu não conseguia.

E ele me golpeava e aí eu gozava e gozava...

Eu gozei tão gostoso...

Daí eu peguei o machado da mão dele e disse que ele tinha que experimentar isso. Que era tão bom... que eu ia fazer bem direitinho e ele ia gozar mais do que eu ainda.

Mas ele não gozou.

Cena #4

(Estão todos arrumando a mesa para o jantar)

Irmão

Eu ontem vi uma coisa, quando eu estava de olhos fechados. Foi assim: fechei os olhos e vi. A mãe estava chorando e não parava de repetir a mesma coisa. Então ele vinha, olhava pro nada e dizia alguma coisa.
Daí vinha o vazio. E dessa vez, a mãe estava feliz.

Pai

Estranho. E o que acontecia depois?

Irmão

Nada. Só isso.

Pai

Isso passa, filho. Eu também já vi essas coisas. É só quando a gente dorme. É também por isso que a gente nunca dorme. Pra não ver essas coisas.

Irmão

Pai?

Pai

Que foi?

Irmão

Eu nem lembro de ontem. Nem lembro de nada que não seja antes dele. Nada antes do que ele quer.

Pai

Eu também não me lembro de ontem. Nem me lembro de quando ele nasceu. Nem me lembro do meu pai, nem da minha mãe. Mas eu lembro do que ele gosta. Do sorriso dele.

Irmão

Pai, às vezes eu tenho a impressão de que eu fiz alguma coisa errada, mas eu não sei bem o que foi. Eu tento me lembrar, mas não consigo. É como se ele estivesse chateado comigo, de alguma forma.

Pai

Ele nunca fica chateado.

Irmão

É. Ele é perfeito... Perfeito demais... Não é estranho?

Pai

É.

Irmão

E mesmo assim, eu sinto que é preciso cuidar dele, sabe? Como se ele precisasse que eu existisse. Como se ele não pudesse viver sem mim.

Pai

Eu também sinto isso... E não me lembro como começou, nem porque.

(Toca a campainha. A mãe vai até a porta)

Mãe

Chegou!

(Blackout)

Cena #5

(A Amante está sentada numa cadeira, enquanto o Host e o Técnico a examinam. Sua cabeça está aberta e vê-se um grande número de equipamentos plugados nela).

Técnico

Troquei os inibidores dela. Por causa dessa resposta à manifestação de amor. A retroalimentação influenciou os circuitos mnêmicos. Ela podia ter alguma recordação desagradável.

Host

Eles sonham?

Técnico

O eletroencefalograma diz que sim. Mas eles não sabem o que é. Estamos trabalhando para induzir o circuito de imagens a se desativar neste caso.

Host

E eles teriam uma espécie de branco? Acho estranho que eles não durmam...

Técnico

Uma unidade Amante deu respostas violentas. Recebi o relatório de ontem. O departamento jurídico foi acionado para resolver o assunto. Esse tipo de violência foi estudada e parece estar associada à ausência de um ciclo de sono completo.

Host

Falha de flexibilização, mais uma vez. Ainda acho que devíamos investir no software deles. Esse trabalho com a inibição dos circuitos mnêmicos e somáticos não vêm apresentando bons resultados.

Técnico

Por hora eu tenho usado um programinha de reinicialização que zera os circuitos mnêmicos. Eles passam a se lembrar apenas das ações que foram satisfatórias. O erro é inibido sem que haja memória.

Host

Talvez isso os torne independentes da reinicialização no laboratório?

Técnico

É possível. É como se fosse um sono em que, quando você acorda, todas as suas memórias negativas se foram.

Host

E ainda por cima são felizes, os filhos da puta.

Técnico

Não. Não são. Eles não sabem o que é isso.

Host

Não sabem. Mas são.

Cena #6

A Mãe está sentada, com o Filho no colo, como Pietá

Mãe

Quando eu pego você assim no colo, eu quase consigo me lembrar de como era ele. Pequeno, nu e frágil nos meus braços.


Quase me lembro do rosto dele, esbanjando um sorriso redondo e sem dentes. Das pernas tentando se firmar no mundo. Da tristeza sem palavras, dos gritos noturnos de uma necessidade ainda indizível.


Eu quase me lembro das palavras tentadas. Dos rabiscos de dizer. Dos nomes quase ditos.

Quase me lembro dos olhos. Da mãozinha dele.


Do corpo pequeno que eu mal acreditava ter saído de dentro de mim.

Mas eu não posso ver.

(Toque de campainha, sucessivo. A Mãe larga o Filho no chão, violentamente. Corre para a porta.)

Mãe

Chegou!

Filho

ÊEEEE! (Corre para o Host e lhe segura as pernas)

Host

(Afaga a cabeça do Filho)

Filho

Pai.

Host

Que foi?

Filho

Como eu era antes?

Host

Como assim?

Filho

O que eu era antes de ser seu Filho?

Host

Ora... Você não existia. Ninguém existia. Porque isso agora?

Filho

Nada, eu queria saber...

Host

(Para a Mãe) Hoje não tem nada pra comer?

Mãe

Não... (Assustada consigo mesma) Eu... Esqueci...

Host

Esqueceu? Como assim? O que você ficou fazendo o dia todo?

Mãe

Eu... Esqueci...

Host

E você? (Para o filho) Não teve fome? Não se lembrou de comer?

Filho

Não...

Host

Onde está a comida de vocês?

Mãe

Não lembro...

Filho

Eu vi... em algum lugar... eu vi, tenho certeza...

Host

Procurem, vamos... Uma lata, EPS, Procaína... Ninguém viu? Onde estão os outros?

Mãe

Outros?

Filho

Somos só eu e a mamãe... E o papai, que é você.

Host

(Para o alto) Manutenção: onde estão as outras unidades?

Mãe

Unidades?

Host

(Para o alto) Rodar seqüência de reinicialização. Rápido!

Filho

Quem é você?

Mãe

Cadê ele? Não chegou ainda? O que será que aconteceu?

Host

(Para o alto) Reiniciar! Manutenção? Reinício!


A seqüência de reinicialização é executada e Mãe e Filho ficam estáticos e inertes. Entra o Técnico, com instrumentação cirúrgica e circuitos em punho.

Técnico

O que houve?

Host

Um mal funcionamento no circuito mnêmico. Uma congestão do circuito somático. Os idiotas não tomaram o EPS nem a Procaína. Se esqueceram do jantar...

Técnico

Por que isso ocorreu?

Host

Eu esperava que você me dissesse. Você não deveria estar monitorando os testes?

Técnico

Eles não disseram nada? Você perguntou a eles?

Host

Eles não se lembravam de nada, já disse...


Entram o Pai e o Irmão. Vêem a Mãe e o Filho estáticos. Se desesperam.

Pai

Quem são vocês? O que vocês fizeram com eles?

Host

Calma... Sou eu! Você não lembra?

Pai

Assassinos! Assassinos!

Irmão

Eles mataram a Mãe, olha só!

Pai

Assassinos!

Host

Pai... Eu sou seu filho, não lembra!

Pai

Assassino! (Parte para cima do Host e o estrangula. O Técnico tenta impedir, mas é atingido pelo Irmão. O Host não consegue escapar. O Técnico reinicializa o Irmão, em seguida, reinicializa o Pai. O Host se levanta, engasgado)

Host

(Chutando o corpo inerte do Pai) Filho da puta! Máquina do caralho! Filho da puta!

Técnico

Calma! Já estão desativados! Calma!

Host

(Para o Técnico) Filho da puta! Como é que você não monitorou essa merda toda? Eu dependo de você, seu filho da puta! Todo dia eu entro nessa porra desse zoológico e fico aqui o dia inteiro com esses merdas, porque eu confio que você vai estar olhando tudo, para o caso de alguma coisa dar errada!

Técnico

Eu me descuidei, desculpe!

Host

Descuidou? Descuidou o caralho!

Técnico

Calma...Calma...

Host

Você estava fudendo ela, não é? Testando um programinha novo na putinha da família, não é? Seu filho da puta!

Técnico

Do que você está falando?

Host

Pensa que eu não sei? De você, enfiando a vara na Amante? A título de ciência? Seu... (Partindo para cima do Técnico) Depravado do caralho!

Técnico

Vai se foder! Sai fora!

Host

Enrabando ela, enquanto ela está desativada!

Técnico

Que é isso, cara? Ficou louco?

Host

Eu não sei como... Mas eu sei que é você...

Técnico

É como se fosse uma boneca. Nada a ver... É uma punheta, só isso... Que está acontecendo? Você está se envolvendo? De verdade? Quero dizer... Você se apaixonou por ela?

Host

Apaixonei? Você acha que eu estou falando disso? Eu estou falando é de confiança. Sabe o que é isso?

Técnico

Já pedi desculpa. Além disso, eu achei que o inibidor mnêmico daria conta da sobrecarga somática. Mas eu me enganei... Desculpe...

Host

Não dá para essas porras entrarem em parafuso a cada vez que um erro do sistema acontece. Eu já falei! Isso está errado!

Técnico

Você tem razão.

Host

Eu tenho razão? Agora que eu quase morro, eu tenho razão? (Pausa) Eles precisam dar uma resposta melhor ao próprio erro... Vamos enviar o relatório do que aconteceu aqui ao departamento dee engenharia. Isso vai convencer os caras a mexerem no software.

Técnico

Mas... E eu...

Host

(Olhando para ele) Você, devia se foder, seu filho da puta!

Técnico

Eu tenho família, cara... Que é isso... Foi só um descuido... (Pausa) Que é que a gente vai fazer?

Host

Eu não entro nessa merda, enquanto a gente não resolver esse problema.

Cena #7

No laboratório, a Amante desperta. Percebe a fiação e os equipamentos ao seu redor. Tenta se levantar e percebe algo preso em sua cabeça. Tenta tirar, mas não consegue. Não consegue se afastar muito dos equipamentos e então pega algo que sirva de espelho. Ao ver-se com a cabeça aberta, desmaia. Entram o Host e o Técnico.

Host

(Entrando) Não dá. Não dá. Se mexemos no circuito somático, o mnêmico entra em colapso. Quando bloqueamos o mnêmico, o somático satura. Não sei o que fazer.

Técnico

Eu estou intrigado com a reação do Pai e do Irmão. É como se tivessem começado a desenvolver um tipo de relação entre eles.

Host

Eu estranhei isso também. Além disso, estavam zelando pela mãe e pelo irmão... Desde quando eles compreendem o sentido da desativação?

Técnico

Temos que rever a sequência de reinicialização mnêmica... (Olha a Amante no chão) Que é isso? Você a tirou do lugar?

Host

Não foi você? Na sua trepadinha?

Técnico

Não... Quero dizer, normalmente eu a arrumo de volta na cadeira. Mas quando ouvi os seus gritos, eu posso ter saído às pressas e me esquecido de arrumar.

Host

O que é isso na mão dela?

Técnico

Uma bandeja...

Host

O que é isso? Alguma tara?

Técnico

Não. (Procurando alguma porta aberta ou câmera) Eu não coloquei isso aí...

Host

Ela pode ter despertado?

Técnico

Não. Impossível. O bloqueio do sistema motor nunca apresentou problemas.

Host

Tudo dá problema nestas máquinas... É possível acessar o arquivo mnêmico dela?

Técnico

Sim. Vamos fazer... (Acessando a máquina) Verifique o eletroencefalograma.

Host

(Verificando o eletro) Há alguma atividade aqui... Sonho?

Técnico

Estão desabilitados. Pode ser interferência...

Host

E o desajuste motor?

Técnico

Não sei... Que dia!

Host

Vamos reinicializá-la? Só para garantir.

Técnico

Ok. (Reinicializa. A Amante dá um solavanco. Os dois a levantam e a colocam novamente na cadeira)

Técnico

Muito estranho...

Host

Pode ter sido a falta dos químicos.

Técnico

Não. A perda de memória veio antes. A Mãe não se lembrou que teria que alimentá-los.

Host

Esse software é uma merda! Não sei... Teríamos que começar do zero... Não sei o que fazer...

Técnico

Nós vamos pensar em algo.

Host

Não dá, cara. Eu não volto pra gaiola com eles. Essas coisas são praticamente indestrutíveis. São imortais! Mas estão com uma programação de merda! Se eu entro lá e você não consegue reiniciar os bichos, eles me trucidam e eu não consigo fazer nada!

Técnico

É isso! Já sei!

Host

Que foi?

Técnico

Vamos mexer no circuito primário. Alterar a base do sistema.

Host

Não estou entendendo...

Técnico

Ao invés de fazer com que eles tentem te agradar, vamos incutir neles o medo de que você morra. Ou de que eles morram sem conseguir fazer o melhor para você.

Host

Mas as coisas não podem morrer.

Técnico

Eu sei disso e você sabe. Mas eles não. E agora, ao invés de ignorarem o sentido da morte, vão ter medo de que ela aconteça.


Os dois voltam para onde se encontra a família desativada. A Amante acorda mais uma vez.

Amante

O que eu sou? (Olha para o próprio corpo) O que eu sou? (Arrancando a fiação) Que coisa sou eu? (Olhando ao redor) Que merda toda é essa que me enfiaram pelos buracos? (Pega um instrumento cirúrgico e começa a se furar) Eu me destruo? Eu posso me destruir? (Se joga contra a cadeira e vai arregaçando todo o laboratório) Eu não vou terminar? O que é que fizeram comigo? O que fizeram com a minha cabeça?

Host

(Voltando, com a Mãe nos ombros) Acho mais certo deixá-los desativados, até que a gente acesse o primário. (Olha a Amante e larga a Mãe) Caralho! Ela acordou sozinha!

Técnico

Impressionante!

Host

Foda-se!

Amante

Quem são vocês? O que eu sou?

Host

Calma... Calma... Está na hora do seu remédio...

Amante

Que merda vocês estão fazendo aqui, com essas pessoas?

Técnico

Não são pessoas. São ergocriaturas.

Host

(Para o Técnico) Cala a boca! (Para a Amante) Moça... Isso que você está vendo é um laboratório. Nós estamos cuidando de você e agora está na hora de você tomar o seu remédio.

Amante

E o que eu sou? Sou como eles?

Técnico

Sim. Você é como eles... E está com um defeito que nós vamos consertar logo logo, se você permitir.

Amante

Eu não sou uma pessoa de verdade?

Host

Não. Você é de mentirinha. Uma máquina.

Técnico

Você é um pouco mais complexa que isso. Uma mistura complexa de genética e robótica. A prótese perfeita para a mente.

Amante

Uma mentira.

Host

Isso. E agora, fique calma, está bem... Nós vamos aplicar algo em você.

Técnico

Algo para tranquilizá-la. Para fazê-la feliz, para sempre...

Amante

Não me toquem, seus filhos da puta! Não me toquem! (Olhando para os dois) Vocês estão com medo, não é? Medo de que eu destrua os dois, não é? (Para o Técnico) Vem aqui! Anda! Vem aqui, seu filho da puta!

Host

Calma, moça. Calma.

Amante

Calma, o caralho! Vem aqui. (Pula pra cima do Técnico com a instrumentação em punho) Vamos ver se você é igual a mim.

Técnico

Eu sou! Eu sou!

Amante

Por fora, você é... Vamos ver por dentro. Vamos ver se você pode morrer ou não.

Técnico

Eu posso! Eu posso!

Amante

Que pena... Por que parece que eu não posso. E agora, me respondam: o que eu sou? (Para o Técnico) Você, o sabidinho, o que diabos eu sou?

Host

Uma mentira! Uma mentira de alta tecnologia!

Técnico

Me solta! Me solta!

Amante

E vocês, o que são? (Enfiando a instrumentação no rosto do Técnico) Respondam!

Host

Somos homens... Homens... Seres humanos de verdade!

Amante

Filhos da puta! Velhas verdades, como vocês, um dia foram mentiras fresquinhas, como eu. Só que vocês vão morrer logo... E eu, vou permanecer aqui pra sempre. Um registro perpétuo do seu fracasso.


(Faz uma marca no rosto do Técnico e foge, arrebentando o laboratório)




BLACKOUT


Cena #8

Ambiente muito claro, branco. O Host e o Técnico, estão juntos, costa com costa, e olham para cima. O Audio conversa com os dois.

Técnico

O que será feito da unidade Amante?

Audio

Será caçada e recapturada.

Host

E depois?

Audio

Será enviada para análise e destruída. (Pausa)

Relatem o ocorrido.

Host

O circuito mnêmico da unidade Amante entrou em colapso.

Audio

Falso.

Técnico

Ela perdeu a memória.

Audio

Falso.

Host

Mas foi isso o que aconteceu.

Técnico

Que resposta você quer ouvir?

Audio

A verdade.

Host

Qual delas? A sua ou a nossa?

Audio

A única.

Técnico

Desculpe... Mas o que você entende por “Única”?

Audio

Aquela sob a qual todas as outras são falsas.

Técnico

Nenhuma outra pode ser verdade?

Audio

Nenhuma outra. RESPONDAM!

Técnico

Eu não sei.

Audio

Só vocês podem responder. Isso aconteceu no turno de vocês.

Host

Isso é falso. O mesmo ocorreu em outros turnos.

Audio

Verdade.

Host

Porque não pergunta a eles o que ocorreu?

Audio

Já foi feito.

Técnico

E o que eles disseram?

Audio

MENTIRAS.

Cena #9

Uma ária de ópera qualquer.
Talvez algum dia seja inútil dizer que essa cena se passa como numa propaganda de cartão de crédito ou de seguro de vidas.
Mas é assim que ela acontece.
Com essa harmonia de relações perfeitas.
A família se cuidando, como se o dinheiro não fosse faltar nunca.
O espaço é amplo. Não estão na cozinha. Não há nada que possa identificar o lugar, mas eles creem estar num campo aberto, completamente livres.
O Pai e a Mãe se afagam carinhosamente, sempre sorrindo, enquanto o Irmão e o Filho fazem uma brincadeira de ciranda.

Mãe

Filho: cuidado com essa brincadeira... Você vai se machucar.

Irmão

Deixa, Mãe! Eu cuido dele. Eu sou forte.

Pai

Ouça a Mamãe!

Filho

Só mais um pouquinho, Pai!


Giram mais um pouco e obviamente, o Irmão não consegue segurar o Filho por muito tempo e ele cai. O Filho e corre para os braços da Mãe. O Pai se levanta apavorado e dá uma surra no Irmão.

Pai

Eu não falei pra você acabar com essa brincadeira?

Irmão

Desculpa, Pai! Desculpa!

Pai

Toma! Toma! Isso é pra você aprender! E se você mata o seu irmão, hein! Já pensou no que acontece?

Mãe

(Sem se mexer) Pára! Você vai matar ele!

Pai

(Se retira desconsertado e vai afagar o Filho) Pronto! Pronto! Passou...


O Irmão fica imóvel no canto, cabisbaixo. Ninguém parece se preocupar com o seu estado.

Host

(Do alto, com o Técnico ao lado) Eles estão se portando bem juntos, não é?

Técnico

(Concordando) Hum...

Host

Estão parecidos com uma família de verdade.

Técnico

É.

Host

Você está sendo irônico?

Técnico

Você sabe muito bem que desde o incidente nós ainda não realizamos com eles nenhum teste de stress. Porque o senhor está se recusando a entrar.

Host

Eles podiam ser vendidos assim: na gaiola e o consumidor ficava assistindo a vida deles pelo lado de fora.

Técnico

Isso já teve o seu tempo. O que vendemos é interação customizada. Aproximação. Contato físico.

Host

Ok. Vou descer.


O Host entra no cenário idílico. As Ergocriaturas à princípio não percebem a sua presença. O Irmão continua isolado num canto, enquanto a Mãe e o Pai cuidam do Filho. O Filho percebe a chegada do Host.

Filho

Pai! (Corre para ele)

Mãe

Você voltou! Eu senti a sua falta!

Pai

Não liga, não dá notícias... Eu estava preocupado.

Mãe

Eu estava começando a pensar que você...

Pai

Não fale besteiras!

Filho

A gente ficou pensando se você não tinha morrido.

Pai

(Bate na boca do Filho) Quieto! Lógico que não morreu. Está aqui, vivinho, não é filhão?

Mãe

Não faz mais isso, hein? Quando for ficar longe da Mamãe, tem que ligar todo dia, tá bom?

Host

Tá bom. Tá bom...

Mãe

Quer comer?

Host

Não.

Pai

Então vamos conversar. Fale como está a sua vida.

Host

(Olhando para o local onde está o Técnico) Essa é muito boa.

Filho

Porque você fala sozinho?

Host

Digamos que a minha vida tem sido dura. Trabalhar no zoológico não é fácil. Você nunca sabe quando as feras vão te atacar.

Mãe

Meu filho! Que loucura! Você está trabalhando num zoológico? Porque isso?

Pai

Você não tem noção do perigo, meu Filho? Você quer morrer, quer?

Filho

Você não pode morrer, papai! Não pode! Senão, quem vai cuidar de mim, hein?

Host

Calma, gente. Ninguém vai morrer, tá bom. Ninguém. As feras estão controladas agora, sabiam? (Acariciando) Estão mansas, calmas... Está faltando alguém... Cadê o meu Irmão?

Pai

Está de castigo.

Host

Porquê?

Pai

Porque fez uma brincadeira muito idiota.

Host

Cadê ele?

Irmão

Tô aqui.

Host

(Indo em direção ao Irmão) O que foi que aconteceu?

Irmão

Eu tava brincando com ele daí ele escapou e caiu... O Pai me bateu porque ficou com medo que eu matasse ele. Mas eu só tava brincando.

Host

Mas você precisa tomar cuidado com essas brincadeiras. Já pensou se você mata algum de nós? Hein? Não ia ser bom, não é?

Irmão

Mas eu só tava brincando. Não queria machucar ele. Foi sem querer.

Host

Escuta: às vezes a gente pode machucar uma pessoa, mesmo sem querer. É por isso que a gente tem que tomar cuidado, entende? Para que acidentes não aconteçam, tá bom?

Irmão

Tá.

Host

E como estão as coisas entre vocês?

Irmão

Como assim?

Host

Quero dizer: entre você, o Papai, a Mamãe, o Filho...

Irmão

Estão normais... Porque?

Host

Pai, Mãe... Venham aqui! Vamos ter uma conversa de família. (Todos se aproximam) Como estão as coisas entre vocês?

Irmão

Pai, eu não sei o que ele quer dizer com isso.

Pai

Bem, Filho, as coisas entre nós estão normais... Quero dizer, estamos indo.

Host

Indo para onde?

Pai

Como assim?

Host

Se vocês estão indo, deve ser para algum lugar. Que lugar é esse?

Mãe

Ele está brincando com vocês.

Pai

(Rindo junto com o Irmão) Entendi.

Host

(Sério) Não estou brincando. Quero saber para onde vocês estão indo.

Mãe

Não sei, Filho. Pra lugar nenhum!! Pronto! E pare com essas brincadeiras.

Host

Já disse que não estou brincando. Vocês estão para lugar nenhum, então... E pra que lado é?

Filho

(Apontando qualquer lugar) Ali!

Host

Não.

Pai

Filho, não entendemos o que você está querendo saber...

Host

Eu quero saber o que é que vocês estão fazendo da vida de vocês. Como a estão vivendo. O que têm feito... Vocês não me perguntaram isso? Eu respondi. Agora é a vez de vocês... O que vocês têm feito?

Pai

Entendo... Bem... Estamos aqui, fazendo um piquenique. Sua Mãe preparou. Se soubessemos que você viria, teríamos feito algo melhor.

Host

E da onde saiu essa idéia de piquenique?

Mãe

(Em dúvida)...nós não sabíamos quando você viria e pensamos em fazer algo para nos sentirmos melhores, para que quando você nos visse nós estivéssemos felizes...

Host

E estão?

Mãe

Sim... Agora que você chegou...

Host

E antes?

Irmão

Antes também...

Host

Mentira! Você não estava feliz!

Irmão

Estava sim!

Host

Não. Você estava triste porque tinha apanhado.

Irmão

Mas eu não estava triste com você.

Host

Com quem era?

Irmão

Era com o Pai.

Pai

Comigo! Eu te mato!

Host

Como?

Pai

Ele disse que estava triste comigo... Eu não fiz nada...

Host

Quem deu uma surra nele?

Pai

Foi porque a sua Mãe ficou assustada.

Mãe

Não. Eu não fiz nada...

Host

Porque não fez nada, então? Porque não impediu que o Pai batesse nele e ele ficasse triste?

Mãe

Porque ele tinha que aprender a não machucar o Filho.

Host

Então, para ensinar ele a não machucar, vocês o machucaram?

Mãe

Eu não. Seu Pai.

Host

Então, Pai, para ensinar o Irmão a não machucar, você o machucou.

Pai

Foi.

Host

E se ele tivesse morrido?

Pai

Não morreu. Sua Mãe não deixaria.

Host

E se fosse só por você....?

Pai

Eu nunca teria matado ele!

Host

Você não se importa se ele morrer?

Pai

Lógico que me importo! Por que essas perguntas, meu filho?!

Host

Isso é felicidade pra vocês?

Pai

Lógico que é felicidade, meu filho! Somos felizes sim. Nós te amamos, filho!

Host

Isso eu sei. Mas vocês são felizes, entre vocês?

Mãe

Nós somos, filho. Nós somos...

Host

E agora? Eu deixo vocês felizes com essas perguntas todas?

Irmão

Sim.

Host

Sim?

Pai

Não. Você nos entristece, Filho.

Host

Entristeço? Porquê?

Pai

Porque fica nos acusando de coisas que não fizemos.

Host

E ele não machucou o Filho? E a Mãe, não foi omissa quando você espancava o Irmão?

Pai

Não fale assim com a sua Mãe.

Host

Eu falo como quiser. Falo o que quiser e foda-se.

Mãe

(Enfia-lhe um tapa na cara. O Host fica alguns instantes com a mão no rosto. Chora de alegria.) Desculpe! Desculpe!

Host

Tudo bem.

Pai

Está vendo? Está vendo? Você magoou a sua mãe! Você não se envergonha?

Filho

Mãe! Mãe! (Chorando) Não chora!

Irmão

Isso, Mãe! Não chora não...

Host

Estou indo embora!

Pai

É o melhor mesmo, filho. Sua Mãe, ela....

Mãe

Meu filho! Meu filho!

Host

Adeus! (Sai)

Pai

Volte depois, filho. Ela já estará melhor...

Mãe

Ele não vai voltar mais?

Pai

Ele volta, querida. Para ver como você está.

Irmão

Não chora, Mãe!

Mãe

(Furiosa) Sai daqui, seu filho da puta! Tudo isso é por culpa sua!

Irmão

Mãe?

Mãe

Sai daqui! Você é quem devia ter ido embora!

Irmão

Mas eu não fiz nada!

Pai

Você com essa sua historinha de não ter feito nada!

Irmão

(Para o Filho) Mas a gente só estava brincando, não é?

Filho

(Para a Mãe) Não chora!

Pai

Suma daqui, anda!

Irmão

Não faz isso comigo!

Pai e Mãe

Vai embora!

Cena #10

Irmão

Daí eu saí de lá. Eu fui longe... Longe...

Até a parede.

E eu ficava pensando sempre no que era que eu tinha dito.


O que tinha feito de errado?

Então eu entendi que não importava.

Que tudo o que eu dissesse ia ser entendido de outra maneira.

Que não importava o que eu dissesse e sim o que ele queria que eu tivesse dito.

Olhava para aquele quadro e finalmente entendia que eu nunca tinha feito parte dele.

Que quando ele não estava lá, os outros só amavam uma pessoa.

E não era eu.

Cena #11

O Host está sentado numa escada, pensativo. Chega o Técnico.

Técnico

Que foi?

Host

Não tenho conseguido dormir. Nem me lembro de quando foi a última vez que eu fiz isso.

Técnico

E porque?

Host

Acho que tem a ver com essa vida na gaiola, sei lá.

Técnico

Talvez fosse o caso de você fazer um exame.

Host

Não gosto dos exames. Fico uns três dias sem me entender direito... Eu estou bem.

Técnico

Cigarro?

Host

Valeu.

Técnico

Você chorou no teste hoje. Porque?

Host

Sei lá. Fiquei comovido, acho.

Técnico

Hmmm.

Host

É que ela reagiu que nem gente, sabe? No meio de todas aquelas perguntas estúpidas do teste... e ela me senta um bofete na cara. Foi digno pra caralho.

Técnico

Eles agora se protegem. Zelam um pelo outro.

Host

Medo da morte.

Técnico

Simples assim.

Cena #12

O Filho está sozinho, brincando com uma faca. O Irmão chega. Filho não percebe.

Irmão

Eu fui até a parede, lá longe.

Filho

Você voltou!

Irmão

O que é isso na sua mão?

Filho

(Escondendo a faca) Nada!

Irmão

É uma faca, isso aí?

Filho

Não é nada!

Irmão

Deixa eu ver, anda!

Filho

Não.

Irmão

Mostra! Senão eu conto pro Papai.

Filho

Bobo! (Dando a faca) Tó.

Irmão

Então... Eu fui até a parede mais longe que tem.

Filho

Eu já fui lá.

Irmão

E como é?

Filho

É... (Não sabe)

Irmão

Mentira! Você não foi não!

Filho

Fui sim!

Irmão

Você agora está mentindo, é? Primeiro essa faca, agora essa história da parede! (Filho abaixa a cabeça) Você não sabe que essa faca machuca? Que com ela você pode se ferir? Que pode até morrer?

Filho

Eu sei. Mas eu só estava brincando.

Irmão

É. Mas eu também só estava brincando e eles me mandaram embora.

Filho

É. Mas você voltou!

Irmão

Voltei sim. Só que agora eu não vou brincar. (Blackout. Dessa vez, têm-se a sensação de uma pane elétrica.)

Cena #13

Os dois estão preenchendo alguns papéis e guardando os equipamentos de trabalho.

Técnico

Agora é questão de um mês ou dois até eles poderem ir para o mercado. Essa idéia do medo da morte foi genial.

Host

E melhorar a resposta de erro deles também. Agora, ao invés de simplesmente darem pau, eles se justificam.

Técnico

E mentem, os filhos da puta.


Num outro ponto, o Filho está de costas para o público. Está imóvel, sentado, com o corpo dobrado para frente.

Mãe

Filho! Filho! Vem com a Mamãe, vem!

Pai

Filho! Chegamos!

Mãe

Tá brincando, né? De esconde-esconde...



Host

Ainda dá para perceber quando estão mentindo, mas já é um bom começo.

Técnico

Mas isso é um problema menor. É inofensivo.



Pai

Cadê esse menino. (Fingindo que não o estão vendo) Você viu onde ele se escondeu?

Mãe

Eu não. Mas ele se esconde muito bem.



Host

De tudo, o melhor é vê-los funcionando independentes de mim. Me mandaram embora hoje.

Técnico

Isso me preocupou.

Host

Isso é metáforico, entende? Não significa uma expulsão da própria casa.


Pai

Ah... Então vai ter que dar uma pista! Tá quente?

Mãe

Tá quente, Filho? Responde.

Pai

(Coloca a mão no ombro do Filho e o puxa para trás) Achou.

(Deita o corpo do Filho e percebe a faca enterrada no peito. A Mãe entra em choque. O Pai puxa a faca, mas não consegue arrancar. O Filho grita de dor)



Técnico

Não sei. Por isso acho melhor enviar o relatório final em dois meses.

Host

Um mês. Quer apostar?

Técnico

Dois meses. Além disso, enquanto eles não encontrarem a unidade extraviada, não vão autorizar a saída desse lote.


Pai

Quem fez isso?

Filho

(Abre a boca. Está sem língua.)

Pai

Quem fez isso com você? (Abraçando o Filho)



Host

Puta que o pariu! Tinha me esquecido dela. Nada ainda?

Técnico

Nada.

Host

E o rastreador dela?




Mãe

Ele vai descobrir. Ele vai pensar que fomos nós.

Pai

Ele está morrendo.

Mãe

Vamos esconder.



Técnico

Eu tinha desligado...

Host

Porquê?



Pai

Vamos pedir ajuda.

Mãe

Para quem?

Pai

Vamos... Alguém vai nos ajudar.

Mãe

Não adianta. Não podemos fazer nada. Não podemos fazer nada. Não adianta.



Técnico

Porque senão a engenharia ia descobrir que eu... Você sabe...

Host

Deixa pra lá.

Técnico

Eles acham que foi ela quem desligou o rastreador, e isso é o que vale.

Técnico

Ei... vem cá...

Host

Que foi?

Técnico

Olha isso. (Aponta na direção do Filho)

Host

Puta que pariu! Aconteceu alguma merda! Estou descendo. (Vai em direção aos três)


(Toque de campainha)

Mãe

Chegou!

Pai

Que fazemos?

(Toque de campainha)

Host

Mãe... Pai... Sou eu... Abram!

Mãe

Já vai, Filho! (Para o Pai) Tire a faca do peito dele, anda!

Host

Abre, Mãe!

Mãe

Já vai! Já vai! Onde foi parar essa chave!

Pai

Vou procurar! (Vai em direção ao Filho e fica tentando arrancar a faca, sem sucesso)

Host

Abram logo... O que está acontecendo aí dentro?

Mãe

Nada. Nada. Eu só perdi a chave da porta.

Pai

Estou quase achando. (Como não consegue retirar a faca do corpo do Filho, esconde-o)

Mãe

Ai que boba que sou! Estava aqui o tempo todo. (Abre)

Host

(Procura pelo Filho no lugar aonde ele estava) Cadê o Filho?

Mãe

(Olha para o Pai) Saiu.

Pai

Com o Irmão.

Mãe

Isso. Os dois... Estão... Brincando...

Host

Não. Não estão. Vou perguntar mais uma vez... Onde está o Filho?

Pai e Mãe

(Fazem um jogo estúpido e ficarem se olhando e em seguida olhando para o Host, sem saber o que dizer para agradá-lo) Não fomos nós.

Host

Não foram vocês, o quê?

Pai

(Apenas aponta para o lugar onde escondeu o corpo do Filho) Isso.

Mãe

Não fomos nós.

Host

(Revela o corpo do Filho. Vê a faca) Puta que pariu! Manutenção: reiniciar!

Mãe

(Para o filho) Filho, não fomos nós, não é?

Filho

(Balança a cabeça negando)

Pai

Viu? Não fizemos isso.

Host

Manutenção! Já disse! Reiniciar!

Pai

Ele vai ficar bem?

Host

Reiniciar, Caralho!


Ouve-se um ruído e surge a Amante. Ela surge sendo carregada nos ombros pelo Irmão. Eles arrastam o Técnico, que está exposto como uma ergocriatura.

Amante

Senhoras e senhores: o homem fictício.
(Apresenta o Técnico)
Sua existência era limitada à impressão dos outros.
Não lhe fosse determinada a essência, passava a inexistir.
Era um reflexo das impressões alheias.
Uma estatística disforme de um homem provável.

Host

O que vocês fizeram com ele?

Amante

(Como se falasse consigo mesma) E agora? O que eu respondo? Será que uma mentira dizendo uma mentira é verdade? Ou mentira? Menos com menos dá mais; ou menos? Digo UM ou digo ZERO?

Irmão

A gente viu o que ele é mano. A gente viu isso!

Amante

(Continuando a história) Queria sair da sua condição plural... e simultaneamente NULA... para uma originalidade, que lhe era assustadora... Mas ao menos lhe era excitante a possibilidade de ser diferente do que era.

Irmão

Ela disse que veio do lugar onde ficaram as nossas memórias. Ela encontrou o que nós somos. Encontrou a verdade. A verdade, mano!

Amante

Esforçava-se para ser e no entanto... continuava não sendo. A cada passo que dava ao seu encontro, mais se afastava de si. A sua essência sempre lhe escapava.

Irmão

Nós não podemos morrer. Entende? Nós não podemos morrer!
No começo ela disse isso, mas eu duvidei.
Daí, ela me enfiou uma faca no peito...
E eu não morri.

Amante

A angústia de não existir, passou a lhe conferir forma! Mas ainda era um vazio... esperando ser... alguma coisa... (Pausa)

Criou-se nele um conflito inexistencial.
(Bate palmas)

Irmão

Então eu pulei do precipício. E quando eu cheguei no fundo, ví que eu não tinha morrido.

Amante

Aí eu falei assim: Agora vá lá e diga ao teu irmão que ele é imortal.

Irmão

E então eu enfiei a faca nele.

Filho

E eu vi que não tinha morrido.

Host

Vocês estão com problemas! É um erro! Um pau no programa de vocês!

Pai

Quer dizer que não podemos morrer?

Mãe

Eu nunca vou ter câncer?

Pai

Nem vou ter alzheimer?

Mãe

Nem vamos enfartar.

Amante

Não. Ninguém pode morrer. Nenhum de nós.

Mãe

O que nós somos?


(Ouve-se apenas a voz em off. Numa tela, as imagens dos atores são projetadas.)

Audio

Porque você quer fazer parte da Evergreen?

Audio Mãe

Porque eu quero ser uma pessoa melhor. Uma mãe melhor para os meus filhos...

Mãe

Então eu posso ser atingida por uma bala. E não vou morrer?

Audio Pai

Eu acho que a Evergreen pode me fazer uma pessoa melhor.


Pai

E eu posso ser linchado? Nada vai acontecer?



Audio

Você aceita fazer parte do programa de aprimoramento genético da Evergreen?

Audio Host

Sim. Quanto eu vou ganhar por isso?

Host

Mentira!

Audio Filho

Eu queria não ficar doente. Nunca mais.

Filho

Eu vi que eu nunca ia crescer. Que eu não ia ficar velho nunca.

Audio Irmão

Vocês podem tirar o sono também? Eu queria ficar sempre acordado. Para aproveitar mais a vida.

Audio Amante

Eu acho que não ia suportar ficar velha...

Amante

Eu vi que a AIDS não podia me matar. Nem a Gonorréia, a Sífilis... Que eu podia trepar o ano inteiro que eu nunca ia morrer.


Audio

Você entende que com esse contrato, você está cedendo os direitos de seu corpo para a Evergreen?

Audio Host

Se isso for para me fazer uma pessoa melhor, porque não?

Host

Não.

Audio

Durante o período da experiência, você pederá o contato com todos os seus entes queridos.

Audio Técnico

Vocês podem me fazer menos barrigudo?

Audio

Poderão ocorrer perdas seletivas de memória e outros efeitos colaterais.

Audio Host

Tudo bem.

Host

Não.

Audio

Você entende que com esse contrato, você está cedendo os direitos de seu corpo para a Evergreen?

Host

(Responde acompanhando o Audio em Off) Sim.

Audio

Bem vindo a Evergreen. Dirija-se ao corredor à esquerda para iniciar a experiência.

Host

(Gargalha e por fim, entra em pane)



FIM