O sineiro estava diante deles, capuz baixo, tentando esconder a enorme corcova.
Diziam:
"Esse é polígono mais torto que já foi desenhado".
"Isso em baixo do capuz, é a cara ou o traseiro?"
"Se for uma coisa, não quero ver a outra".
"Se esse é o filhote, fujamos da cria adulta".
"Se isso é o mais certo disso, fujamos do errado".
O sineiro não apreciava a poesia.
Era surdo.
sexta-feira, 29 de julho de 2005
Quasímodo
Chegança III
Alguém veio e disse:
"Separa o canto deles do nosso".
"Cerca. Divide assim: a montanha é deles. O rio é nosso".
E a montanha, sairia da cerca
sem que ninguém se desse conta.
Depois traçariam linhas, cercando as cercas que não podiam cercar.
E disseram que uma linha era a frente.
A outra atrás.
E outras mais de cada lado.
Quadraram seu mundo e lá ficaram.
Além da borda, o infinito.
Ou o fim do mundo.
Mágica
Parece que vêm até aqui e nos olham
como se estivéssemos fazendo alguma
mágica e então eles se perguntam de
que cartola nós tiramos tanta felicidade.
Chegança II
Eu já gosto de ficar olhando para as gentes
e ficar achando as parecenças.
Aquele é tio Vitor.
Aquele outro é Chico Moço.
Lá longe, Dona Dadora mais seu Alfredo.
Acolá Lucas, Pedro, João, Mateus...
E seu Tomé na frente deles.
Chegança I
Quando eu chego num lugar novo,
tiro as sandálias e bato uma na outra...
Pra sair a poeira, sabe?
Poeira do que já foi.
Daí eu pego as sandálias
e raspo na terra do chão.
E banho elas na água
e raspo de novo.
Que é pra ficar impregnado do agora.
sexta-feira, 15 de julho de 2005
Funcionar ou Viver
Tinha ido conversar com ele porque achava que estava com algum problema que fazia com que não funcionasse direito. Achava que a vida estava se esvaindo sem que tivesse feito nada de significativo.
- Pare de funcionar e viva.
- Se eu parar de funcionar, morro.
- Eu já não funciono.
- E como vive?
- Vivo pelos meus meios.
- Então não vive. Você apenas funciona.
É preciso deixar de funcionar para viver.
O outro apenas riu. Mediu o sujeito de cima a baixo e pensava que estava diante de alguma criatura rara. Uma esfíngie, talvez.
- Você pode escolher entre funcionar ou viver.
Não se pode ter os dois ao mesmo tempo.
Se escolher a vida, estarei aqui para ajudá-lo.
Mas, se você escolhe funcionar... não posso consertar isso.
Porque perdi a crença na máquina.
quinta-feira, 14 de julho de 2005
Reformas
Um reformador, ele era.
Achava que o mundo era uma máquina quebrada cujo funcionamento ele a muito havia desvendado. Todos os esquemas, toda a mecânica, todas as possibilidades, tudo...
O que ele sabia, sabia.
O que não sabia, sabia que saberia.
E assim seguia.
Se lhe perguntavam o que estava fazendo, ele interrompia sua longa cadeia de raciocínios e observava o inquiridor.
Sabia que sabia o que o outro queria saber e engrenava uma longa série de elocubrações e sentenças explicando toda a mecânica do cosmos, da forma mais simples que poderia conceber, rica em metáforas e alegorias, repleta de jogos de lógica e de um certo tempero irônico ao que o outro redarguia com um QUÊ? que ele logo respondia com outra série de raciocínios até que soubesse que, de fato o outro sabia.
E seguia reformando, ainda que abandonasse o outro com um QUÊ? ainda maior e mais confuso.
Não suportava a ajuda de outros, é claro. Porque a cada parada explicatória a máquina do mundo se complicava, e sua função lhe obrigava a agir.
De modo que seguia reparando tudo atinar que estava cansado.
Então mudava de lado e ia consertar algo noutra parte, sem perceber que ficava só. E que a tarefa a que se propunha era colossal.
Que o cansaço o fosse massacrando, tudo bem.
Mas lhe sobrevinha uma irritação constante com a incompreensão. na sua cabeça, os outros eram peças da máquina cuja direção ele revertia ao explicar o mundo e seu funcionamento correto.
Ou ainda, o outro era a ferramenta que ele usava para consertar tudo.
Bem... Seguiria assim.
Mas um dia compreendeu sua própria mecânica e então se irritou, porque se achava mais humano que os demais, que eram para ele autômatos.
Se soube máquina. E isso era um defeito.
Engrenou então um reformismo de si. E se fechou para balanço. Era preciso se humanizar.
Mergulhou no labirinto de sues raciocínios e começou a ter vários QUÊS a seu respeito.
E ia e se julgava e se reformava e não conseguia e se asfixiava e perdia e seguia e ia, ia, ia...
Não foi pela SUA longa série de raciocínios que ele chegou ao entendimento de que só reformaria a máquina do mundo se reformasse a si mesmo e ensinasse a outros a mesma coisa. Se ensinasse a reparar o que havia ensinado, ensinando uma direção nova, que era ensinar o outro a ensinar que o mundo poderia ser menos mecânico e mais humano.
E avançando nisso, se humanizou, humanizando a outros.
E o mundo não precisou mais de conserto.
Porque não era uma máquina.