terça-feira, 8 de junho de 2004

Manga

A palavra é uma abstração que foi convencionada a se tornar concreta. Aí reside a dificuldade da palavra em materializar experiências. Sendo uma abstração, guarda significados prováveis, jamais objetivos ou únicos. A palavra é um campo de possibilidades significativas, e não um ponto objetivo de sentido. Neste sentido, a palavra é inexata, imprecisa, pois está impregnada de sentidos. MANGA

Linguageamento

Faço linguagens para falar de coisas que conhecemos de uma maneira que não conhecemos. Para que essas coisas sejam reconhecidas. Para que signifiquem outras coisas e ainda assim, sejam a coisa mesma.

Desencontros

Esbarraram-se, sem dúvida.

Era impossível que não o fizessem, já que caminhavam distraídos e em rumos opostos.

Bastava que um deles ficasse cego à própria distração (distraindo-se ainda mais), para que suspeitasse das intenções inexistentes do outro e se envolveriam num conflito cada vez mais violento, até que o mundo se cobriria com o sangue dos dois.

No entanto, a um aceno de mão, compreenderam imediatamente que o outro não o havia atingido propositadamente e tomaram cada qual o seu rumo.

Autópsia

Ouvia, agora mais claramente do que nunca, o interminável solilóquio provindo de algum ponto no meio do seu crânio e que ele interpretava como sendo a sua consciência.

Sua última esperança era a de que, aproximado o momento final, a voz cessaria e ele retornaria a uma espécie de silêncio primordial. Mas esta esperança morreu sem encontrar alívio.

Seu último juiz foi ele mesmo, proferindo sentenças até que cessasse a voz; não por uma interrupção dela, ou porque viesse uma condenação definitiva e sim porque ele não lhe prestava mais a atenção.

O silêncio, no entanto, não chegou antes do nada.

Portifólio 1

Eu devia ter trabalhado num portifólio, ou coisa que o valha, mas acho isso um pé no saco. Não costumo ter guardado nada do que eu fiz.
Minha vocação é a de ator, mesmo.
Uma foto quer dizer nada. Um vídeo também não.
Ambos são coisas outras que não o teatro.
O registro pra gente é um pouco inútil.
Pensei que talvez fosse melhor trabalhar num projeto novo, algo que tivesse a ver comigo e com o que eu sei fazer.
No fim das contas, é o que importa, não é?
Ao invés de fazer um museu virtual de mim mesmo, resolvi me colocar na rede, desenvolvendo um projeto que possa estar evoluindo constantemente.

Abordando as Ferramentas

Penso em duas abordagens da máquina.
A primeira seria a da ferramenta como uma extensão do próprio homem. Digo “homem” e não “corpo”, porque não compreendo o humano dividido em duas coisas distintas: o corpo e uma segunda coisa.

E a segunda abordagem, da ferramenta como um receptáculo mais adequado para a mente, uma vez que o corpo-sedentário-domesticado está obsoleto.

Na primeira abordagem, penso no trabalho. Na capacidade de amplificar as possibilidades do corpo através das ferramentas. Ferramentas que facilitem o trabalho remodelando o que somos. Máquinas de desenvolver o que somos, não de atrofiar. Máquinas que nos façam subir montanhas, atravessar rios. Máquinas que sejam descartáveis, porque após seu uso não necessitaríamos mais delas.

Na segunda, penso no conforto. Nos enfartes, nas obesidades, nos homens-hamster correndo nas suas esteiras sem irem a lugar nenhum. Nos carros cheios de uma pessoa só. Na fumaça peidorrenta que eles soltam. Nos homem-microondas, que se orgulham de não saberem preparar suas comidas. Nos caçadores de supermercado, que capturam suas presas na prateleira. Nos celulares que interferem nos marca-passos e dão câncer no cérebro. Na TV, deixando doidas as nossas rolas e bucetas.

A VELHA

Você não anda? Que inútil...
Deixe de chorar e aprenda a andar.
Senão nunca vai comer.
(...)
O quê? Que foi que disse?
Não entendo a sua língua.
Não adianta chorar, ouviu?
É preciso dizer o que se sente.
Chorar não significa nada.
(...)
Ora, você é só um analfabeto...
Para quê eu iria querer você?
Aprenda a ler e a escrever.
(...)
O que você conhece da vida, hein? Nada.
Não conclui seus estudos ainda.
Volte quando tiver terminado a escola.
(...)
Ah. Já tem um diploma.
Que bonito. De que é? Disso?
Isso não serve para nada.
Volte depois, quando tiver estudado mais.
(...)
Que foi que você já fez na vida? Estudou?
Não tem experiência nenhuma? Como assim?
Ora, eu preciso de alguém com experiência e não de um fedelho como você.
(...)
Você é capacitado. Que bom...
Que trabalhozinho de merda esse seu, hein?
Quanto você acha que vale?
Tudo isso? Eu não vou pagar tanto por essa merda...
Nem de graça eu quero.
(...)
Você precisa se adaptar aos novos tempos.
Isso que você faz já não significa nada.
É preciso fazer ainda mais que isso.
Se você sair, eu posso encontrar outros dez que fazem mais do que você.
Ganhando menos por isso...
Aliás, o que você ainda está fazendo aqui?
(...)
Você tem bastante experiência nisso, é verdade.
Mas eu preciso de alguém mais jovem.
Para quê você quer fazer isso?
Está na hora de parar de fazer.
Vá descansar.