A palavra é uma abstração que foi convencionada a se tornar concreta. Aí reside a dificuldade da palavra em materializar experiências. Sendo uma abstração, guarda significados prováveis, jamais objetivos ou únicos. A palavra é um campo de possibilidades significativas, e não um ponto objetivo de sentido. Neste sentido, a palavra é inexata, imprecisa, pois está impregnada de sentidos. MANGA
terça-feira, 8 de junho de 2004
Linguageamento
Faço linguagens para falar de coisas que conhecemos de uma maneira que não conhecemos. Para que essas coisas sejam reconhecidas. Para que signifiquem outras coisas e ainda assim, sejam a coisa mesma.
Desencontros
Esbarraram-se, sem dúvida.
Era impossível que não o fizessem, já que caminhavam distraídos e em rumos opostos.
Bastava que um deles ficasse cego à própria distração (distraindo-se ainda mais), para que suspeitasse das intenções inexistentes do outro e se envolveriam num conflito cada vez mais violento, até que o mundo se cobriria com o sangue dos dois.
No entanto, a um aceno de mão, compreenderam imediatamente que o outro não o havia atingido propositadamente e tomaram cada qual o seu rumo.
Autópsia
Ouvia, agora mais claramente do que nunca, o interminável solilóquio provindo de algum ponto no meio do seu crânio e que ele interpretava como sendo a sua consciência.
Sua última esperança era a de que, aproximado o momento final, a voz cessaria e ele retornaria a uma espécie de silêncio primordial. Mas esta esperança morreu sem encontrar alívio.
Seu último juiz foi ele mesmo, proferindo sentenças até que cessasse a voz; não por uma interrupção dela, ou porque viesse uma condenação definitiva e sim porque ele não lhe prestava mais a atenção.
O silêncio, no entanto, não chegou antes do nada.
Portifólio 1
Eu devia ter trabalhado num portifólio, ou coisa que o valha, mas acho isso um pé no saco. Não costumo ter guardado nada do que eu fiz.
Minha vocação é a de ator, mesmo.
Uma foto quer dizer nada. Um vídeo também não.
Ambos são coisas outras que não o teatro.
O registro pra gente é um pouco inútil.
Pensei que talvez fosse melhor trabalhar num projeto novo, algo que tivesse a ver comigo e com o que eu sei fazer.
No fim das contas, é o que importa, não é?
Ao invés de fazer um museu virtual de mim mesmo, resolvi me colocar na rede, desenvolvendo um projeto que possa estar evoluindo constantemente.
Abordando as Ferramentas
Penso em duas abordagens da máquina.
A primeira seria a da ferramenta como uma extensão do próprio homem. Digo “homem” e não “corpo”, porque não compreendo o humano dividido em duas coisas distintas: o corpo e uma segunda coisa.
E a segunda abordagem, da ferramenta como um receptáculo mais adequado para a mente, uma vez que o corpo-sedentário-domesticado está obsoleto.
Na primeira abordagem, penso no trabalho. Na capacidade de amplificar as possibilidades do corpo através das ferramentas. Ferramentas que facilitem o trabalho remodelando o que somos. Máquinas de desenvolver o que somos, não de atrofiar. Máquinas que nos façam subir montanhas, atravessar rios. Máquinas que sejam descartáveis, porque após seu uso não necessitaríamos mais delas.
Na segunda, penso no conforto. Nos enfartes, nas obesidades, nos homens-hamster correndo nas suas esteiras sem irem a lugar nenhum. Nos carros cheios de uma pessoa só. Na fumaça peidorrenta que eles soltam. Nos homem-microondas, que se orgulham de não saberem preparar suas comidas. Nos caçadores de supermercado, que capturam suas presas na prateleira. Nos celulares que interferem nos marca-passos e dão câncer no cérebro. Na TV, deixando doidas as nossas rolas e bucetas.
A VELHA
Você não anda? Que inútil...
Deixe de chorar e aprenda a andar.
Senão nunca vai comer.
(...)
O quê? Que foi que disse?
Não entendo a sua língua.
Não adianta chorar, ouviu?
É preciso dizer o que se sente.
Chorar não significa nada.
(...)
Ora, você é só um analfabeto...
Para quê eu iria querer você?
Aprenda a ler e a escrever.
(...)
O que você conhece da vida, hein? Nada.
Não conclui seus estudos ainda.
Volte quando tiver terminado a escola.
(...)
Ah. Já tem um diploma.
Que bonito. De que é? Disso?
Isso não serve para nada.
Volte depois, quando tiver estudado mais.
(...)
Que foi que você já fez na vida? Estudou?
Não tem experiência nenhuma? Como assim?
Ora, eu preciso de alguém com experiência e não de um fedelho como você.
(...)
Você é capacitado. Que bom...
Que trabalhozinho de merda esse seu, hein?
Quanto você acha que vale?
Tudo isso? Eu não vou pagar tanto por essa merda...
Nem de graça eu quero.
(...)
Você precisa se adaptar aos novos tempos.
Isso que você faz já não significa nada.
É preciso fazer ainda mais que isso.
Se você sair, eu posso encontrar outros dez que fazem mais do que você.
Ganhando menos por isso...
Aliás, o que você ainda está fazendo aqui?
(...)
Você tem bastante experiência nisso, é verdade.
Mas eu preciso de alguém mais jovem.
Para quê você quer fazer isso?
Está na hora de parar de fazer.
Vá descansar.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2004
A construção
Ator 1, Joca (Português), Martim Afonso
Atriz 2, Paolo (Italiano), Jesuíta
Ator 3, Matogrosso (Mameluco), Dona da Pensão, Índio, Padre
Prelúdio
(Os atores entram e preparam o palco para a encenação)
Ator 3- (Com um papel na mão) “Se o senhor não está lembrado, dá licença de eu contar. Aqui onde agora está, esse edifício alto tinha uma clareira na beira dum riacho. Foi aqui seu moço que eu, Matogrosso e o Joca, construímos nossa maloca”.
Atriz 2 - O ano em que esta carta foi escrita era 1623. Há uma enorme confusão quanto à procedência do autor. Alguns pesquisadores afirmam que a carta foi escrita por uma mulher. Outros afirmam que isso é impossível, pois não se tem registro de que as mulheres da época sabiam ler e escrever...
Ator 1 - O documento em questão conta as estranhas aventuras por que passaram um português e um italiano que chegaram a então Vila de Piratininga, no ano de 1553, trazidos pela mão de um nativo... É o nascimento desta Vila, visto pelos olhos destes três homens, a história que iremos contar.
Primeira parte – A chegada
(O Mameluco vem à frente, seguido pelos outros dois: o Português e o Italiano. É ele quem apresenta o povoado)
Português
Ai que diabos! Já devemos ter andado bem umas dez léguas no meio desse mato grosso!
Italiano
E esse mestiço disse que era pertinho.
Português
Ei amigo...(Para o italiano) Como é que ele chama?
Italiano
Sei lá. Não perguntei...
Português
Ô amigo, qual é o teu nome?
Mameluco
Caribóca. (Os outros dois não entendem) Mameluco.
Português
Maluco? Matuluco? Matoloco? Vou te chamar de Matogrosso...
Matogrosso
Tá bom. Pode ser... O que vocês querem saber mesmo?
Italiano
A gente quer saber se falta muito...
Matogrosso
É logo ali... Tá vendo?
Italiano
Faz dois dias que estamos vendo...
Matogrosso
Eu devia ter deixado esses dois cortando cana...
Italiano
Que caminho desgraçado... Vocês não sabem o que é estrada não?
E se nos pegam andando por essa trilha?
Matogrosso
Quem? Os portugueses ou os índios?
Português
Índios? Que índios?
Italiano
Você não disse que o caminho era seguro?
Matogrosso
E é. Mas se os índios nos pegam...
Português
Ai meu Deus! Viramos comida!
Matogrosso
Quieto, diacho! Não vai acontecer nada. O pior é se a portuguezada descobre que a gente se embrenhou no mato...
Italiano
Ora, o que vão fazer? Vão nos desterrar de novo?
Português
Não. A nova lei diz que devemos ser enforcados...
Italiano
Tô dizendo que é melhor voltar...
Matogrosso
Espera... Que cheiro é esse? É chuva!
Português
É melhor procurarmos algum abrigo. Podemos esperar a chuva passar...
Matogrosso
É melhor a gente apertar o passo, porque se chover, o rio vai encher e não vamos chegar do outro lado...
(Atravessam o rio. Percebem a mudança da paisagem)
Matogrosso
Muito bem, meus senhores, aqui estamos nós: Campos de Piratininga. Este é o rio Tamanduateí. No outro lado, o Anhangabaú.
Italiano
Que beleza! Até que enfim uma cidade!
Português
Não chega a ser grande coisa. Mas é melhor que andar no mato...
Italiano
Nossa... Estou quebrado! Preciso arranjar um lugar para dormir.
Português
Eu também. Estou todo moído.
Matogrosso
Se vocês estão procurando lugar para dormir, as casas da vila ficam ali em cima.
Italiano
E você, para onde vai?
Matogrosso
Eu vou trabalhar na minha maloca.
Português
O que vem a ser paçoca?
Matogrosso
MALOCA. Mafuá, pico, duas teia, morada.
Italiano
Ah, sua casa?
Matogrosso
Que é isso, seu moço... Num é casa ainda não... Eu comecei a construir ela perto do rio, num lugar bom que a enchente não pega e fica perto dos barcos... Já dá pra dormir, mas ainda não ficou pronta, que eu não tenho dinheiro. Aliás, falando nisso, paguem o meu serviço...
Português
São cem cobres, não é?
Matogrosso
Cem o quê? Eu disse cento e vinte! De cada um!
Italiano
Toma. Te dou cem e fico te devendo vinte.
Matogrosso
(Contando) Ei, Português, aqui só tem noventa!
Português
Por isso que é pobre! Não pode nem deixar um desconto para o freguês... Toma aqui os teus dez.
Matogrosso
Agradecido. Precisando de qualquer coisa, mande chamar o Mameluco. Aliás, chamem Matogrosso que aí eu já sei que são vocês. (aperta a mão dos dois e sai).
Italiano
Vamos até a vila procurar algum lugar para dormir.
Português
Eu vou tirar as botas, não estou agüentando mais. (Senta) Faz uns vinte dias que eu não tiro a bota nem para dormir.
Italiano
Deixa que eu te ajudo. (Pega as botas) Minha nossa, que mau cheiro! Tem alguma coisa morta dentro da bota!
Português
Não é nada! É o pé que está fedendo. (O Italiano puxa as botas do Português)
Italiano
Você não toma banho não? Não precisa fazer que nem essa gente daqui, que toma banho todo dia. Mas tem que tomar uma vez por semana...
Português
Taí. Hoje vou tomar banho... E lavar os pés também.
Italiano
É melhor você lavar as botas também. Se não um urubu vai comer.
Português
Ô da casa! Ô da casa! Queremos pouso!
Italiano
E comida! E banho, também!
Dona da Pensão
Que é que é?
Português
Somos dois cidadãos da Europa e estamos procurando pouso aqui nestes Campos de Piratininga.
Dona da Pensão
Ah sim... Aqui é assim, você paga e a gente sorri.
Italiano
E quanto custa?
Dona da Pensão
Cinqüenta cobres por dia. Mais dez, se quiser tomar banho e mais vinte, se quiser almoço.
Português
Cinqüenta cobres, por quarto, banho e refeição? Isso é um absurdo!
Dona da pensão
São oitenta cobres! Cento e sessenta, se contarmos os dois!
Italiano
Senhora, tenha piedade. Acabamos de chegar. Faça tudo por cem cobres...
Português
Dou oitenta! Pelos dois!
Dona da Pensão
Isso aqui não é casa de caridade! Se quiser caridade, vá procurar os jesuítas!
(Sai)
Português
Que diaba ruim de negociar! Já estou vendo que essa vila não vai para frente...
Italiano
A culpa é sua! Por que não aceitou os cem cobres?
Português
Ora, pois! Porque eu não tinha!
Italiano
Assim vai mal! Será que tudo aqui é caro assim?
Português
Vamos precisar logo de um trabalho!
Italiano
Eu só sei cuidar de navio... Mas aqui não tem serviço pra mim.
Português
Eu sou pedreiro.
Italiano
Eu também trabalho um pouco com madeira. Ah, já sei: podemos fazer uma casa, então... Como o tal do Matogrosso. Vamos procurar o mestiço e ver se ele precisa de ajuda. A gente troca trabalho por moradia. E só vai precisar gastar com comida...
Matogrosso
(Chegando como se tivesse acabado de tomar banho) Olha aí a minha freguesia!
Português
Boas noites!
Italiano
Seu Matogrosso, precisamos da sua ajuda!
Matogrosso
Mas nem acabaram de me pagar ainda e já querem outro serviço! Desse jeito vou a falência!
Português
Estamos dispostos a sermos seus sócios...
Italiano
É isso mesmo. Queremos ajudá-lo a construir a sua moradia...
Português
No seu empreendimento chamado mafúncia...
Italiano
Em troca de hospedagem.
Matogrosso
Ah, vocês vão me ajudar com a maloca! Gostei da idéia!
Português
Mas o senhor vai ter que nos trazer as pedras para que possamos construir...
Matogrosso
Trazer pedra? Eu? Ficou louco? Se eu quisesse pegar no pesado tinha ficado em Santos.
Italiano
Fica quieto. Quer perder essa pensão também... Se você nos ensinar, podemos fazer a casa de barro mesmo, como os índios daqui.
Matogrosso
Olha aí o meu plano: eu vou ensinar vocês como trabalhar com o pau a pique e vocês me ajudam a acabar de construir a minha maloca. Depois, vão procurar trabalho... E aí é cada um pro seu lado.
Português
O senhor não entendeu.
Italiano
Isso mesmo.
Português
Seremos seus sócios.
Italiano
Nós o ajudamos a construir a maloca e moramos os três nela...
Matogrosso
Mas que confusão! Vai ficar parecendo uma oca, todo mundo misturado... Num gostei disso não... Aqui não tem espaço pra nós três...
Português
Pois então fazemos assim: nós três vamos fazendo a bitoca e enquanto isso nós vamos morando nela.
Italiano
Um ajuda o outro. Um mutirão.
Matogrosso
Tá bom, tá bom.... Mas essa primeira já é a minha!
Português
Então somos sócios: Joca, Paolo e Matogrosso associados.
Matogrosso
Isso! Então, ‘bora trabalhar.
Paolo
Matogrosso, você tem algum lugar aqui na sua casa onde a gente possa tomar banho?
Matogrosso
Pois tome ali no rio, que ninguém aqui quer ver pimba não!
Joca
Então vamos lá.
Paolo
Vai você primeiro. Eu vou logo depois.
Matogrosso
Ora, vão logo os dois juntos, que o rio é grande, a gente já acaba com essa história de banho e já começa logo com o serviço.
Paolo
(Constrangido) Eu prefiro ir sozinho, depois.
Joca
Então, vou lavar-me.
(Sai)
Paolo
Enquanto isso, vou fazendo a comida, que tal?
Matogrosso
Com o quê?
Paolo
Não tem farinha de trigo, nem ovos, nem sal?
Matogrosso
Tenho não. Eu cheguei agora, não consegui comprar nada.
Paolo
Pois então vá comprar...
Matogrosso
Num tenho dinheiro...
Paolo
Mas nós não pagamos o seu serviço agora mesmo?
Matogrosso
Mas eu tinha umas pinduras pra pagar e sobrou bem pouquinho.
Paolo
Mas então juntamos os pouquinhos e compramos alguma coisa...
Matogrosso
Mas e amanhã? Se eu te der esse pouquinho, amanhã vou ficar sem.
Paolo
Amanhã a gente arruma um trabalho e compra mais comida. Vamos.
Matogrosso
(Segue o outro) Arrumar trabalho? E quem vai construir a maloca?
Paolo
Nós mesmos. A gente trabalha numa parte do dia e na outra constrói a maloca.
Matogrosso
Vai ficar uma beleza mesmo essa maloca! A gente cansado do serviço e fazendo ela de qualquer jeito depois...
Paolo
Você sabe fazer o quê?
Matogrosso
Meu negócio é não fazer nada! Mas de vez em quando eu desço lá pra Santos e trago um pessoal para cá, pelas trilhas dos índios.
Paolo
Pois então é isso! O senhor volta até Santos e traz mais pessoas. Cobra mais caro!
Matogrosso
Olha só! Me devendo vinte contos e falando em cobrar mais caro...
Paolo
Ora, então faz mais viagens.
Matogrosso
Não posso porque estão falando que os índios estão de tocaia para atacar a vila. E você, sabe fazer o quê?
Paolo
Lá na Itália eu cozinhava. E aprendi a trabalhar um pouco com madeira, porque o meu mari(...), o meu pai... era carpinteiro.
Matogrosso
Ô Seu Martim!
Martim
Que queres?
Matogrosso
Esse tipo está a procura de trabalho, seu Martim.
Martim
Não estás longe demais da tua aldeia, índio?
Matogrosso
Não sou índio não senhor! Eu sou filho de Português como o senhor...
Paolo
Senhor Martim, eu e meus sócios estamos à procura de trabalho honesto.
Martim
Quem são teus sócios?
Matogrosso
Eu e o Português Joaquim.
Martim
(Para Paolo) Se esse aqui faz parte da tua sociedade, acabou-se o trabalho honesto...
Paolo
Não diga isso. Esse homem é um sujeito corajoso, ele até nos trouxe de Santos até aqui pelas trilhas dos índios.
Matogrosso
Rapaz, não diga isso não, que é a mulher dele quem não deixa a gente subir!
Martim
Quer dizer que você ainda não parou com essa história de ser guia na trilha dos índios... Acho que vou ter que te enforcar...
Matogrosso
Tá vendo só? Agora eu vou me lascar!
Paolo
Ele está arrependido, Sr. Martim. Disse que agora vai arranjar um outro trabalho.
Matogrosso
Eu não quero trabalho, não senhor!
Martim
Ah. Prefere então a forca!
Matogrosso
Diga logo o que tenho para fazer...
Martim
Fiz um acordo com os Jesuítas que por aqui estão: ajudaríamos os padres a construírem uma escola para ensinarem o Português para os índios dessa terra.(Para Paolo) Pegue esse e mais dois índios que eu troco os três por uma mula.
Paolo
Eu e meus dois amigos somos construtores. O Matogrosso aqui tá construindo uma maloca, eu trabalho com madeira e o Português era pedreiro.
Martim
Muito bem! Leve esse índio e seu amigo Português para falar com o meu capataz. Se ele aprovar, vocês poderão trabalhar na obra do Colégio.
(Sai)
Paolo
Muito agradecido, senhor! (Para Matogrosso) Está vendo? É assim que se arranja trabalho!
Matogrosso
Bela lição! Arranjar trabalho... Eu queria é aprender a comer sem ter que trabalhar, que nem o seu Martim e os Jesuítas... Eu dormindo e a maloca se levantando sozinha...
Paolo
Mas que merda! Me esqueci da comida... Podia ter pedido um adiantamento ao tal Martim...
Matogrosso
Rapaz, não brinque com esse Martim não que ele lhe coloca no prato de algum índio... Já não tá bom ele lhe arranjar um serviço?
Paolo
E se a gente fosse falar com os Jesuítas? Na Itália os padres costumam dar comida para quem precisa...
Matogrosso
Pois aqui eu não conheço essa história não...
Paolo
Não custa a gente tentar...
Matogrosso
Pois então vamos esperar o Joca. Os padres falam enrolado que nem ele. Acho que eles vão se entender...
Paolo
Mas a gente não conseguiu falar com o Sr Martim?
Matogrosso
Seu Martim já é quase índio. É mais fácil de conversar com ele. Os padres falam dum jeito que não dá pra entender nada...
Joca
(Entrando) Que beleza! Lavei até as botas...
Paolo
Mas você tomou banho?
Joca
Ora! É claro que sim! E onde está a comidinha?
Matogrosso
Não tem. Mas eu e o Paolo aqui estamos pensando que você podia ir conversar com os Jesuítas para ver se eles não podem dar.
Joca
Com os Jesuítas? Não posso! Não posso! Eu... eu... não sou cristão...
Matogrosso
Mas não tem problema isso não, rapaz! E por acaso eu sou cristão? Você vai lá e faz os sinais dos bichos e pede comida...
Joca
Mas você é índio. (Matogrosso olha enfezado) Ou quase. Ninguém espera que você seja cristão. Mas comigo, é diferente. Ora, vão vocês! Aliás, por que não foram ainda?
Paolo
Porque a gente estava te arranjando um trabalhinho...
Joca
Um trabalho? Que maravilha! Onde?
Paolo
O Matogrosso te explica tudo enquanto eu vou tomar meu banho...
(Sai)
Matogrosso
Tem algum tempo que esses padres Jesuítas chegaram por aqui e botaram na cabeça que todo mundo tem que virar cristão. E agora eles resolveram que vão construir um colégio aqui em Piratininga.
Joca
E para quê eles querem fazer esse Colégio?
Matogrosso
Pra ensinar o Português para os índios.e aquela religião deles no meio disso tudo, entendeu?
Joca
Viu? É disso que eu estou falando... Eles ensinam o Português mas na verdade querem que todo mundo vire cristão...
Matogrosso
Isso. E dizem que até conseguiram que alguns índios parassem de comer gente...
Joca
Isso é bom... Mas o que acontece com os que não querem ser cristãos, hein?
Matogrosso
Não sei não. Vai ver que é mandado embora da vila, sei lá.
Joca
Ai! Ai! Ai! Já tive que fugir de Portugal por isso. Agora vou fugir daqui... Onde é que vou parar? Não falo com Jesuítas...
Matogrosso
Acontece que os Jesuítas falam assim, meio enrolado, que nem você...
Joca
Eu não falo enrolado. Quem fala é você.
Matogrosso
(De uma vez só) Rapaz, e eu lá falo enrolado, rapaz. Eu falando todo mundo entende. Agora você não tem jeito não. Fala, fala e não sai daí. Empaca que nem uma mula velha na estrada. Embola a boca toda parece que tem ovo na boca igualzinho aos danados do Jesuítas.
Joca
(De uma vez só) Pois olhe aí quem é que fala enrolado. Só pode ser mesmo um índio vira-lata para falar dessa maneira.
Matogrosso
Isso aí eu entendi danado!
Joca
Pois então vá se entender com os Jesuítas!
Matogrosso
Rapaz, deixe de ser mal agradecido! Eu não tô lhe deixando morar na minha maloca? Você não tava ali lavando seus particular e a gente não tava aqui arranjando um trabalhinho pra você? Você vai lá e finge que quer ser cristão e pronto... Você acha que os padres vão saber quem você é? Sabem nada!
Joca
Tudo bem então... Mas você vem comigo... E se eles me descobrirem, a gente corre!
Matogrosso
Então ‘bora! Olha só... Um menino vestido de padre... Ei menino, onde é que moram os Jesuítas?
Jesuíta
Boas noites, meus filhos queridos...
Joca
No...Noite, seu padre.
Matogrosso
Diga logo a ele que a gente quer comida...
Joca
Se.. Seu Padre...
Jesuíta
Já entendi meu filho... Vocês estão famintos, não é?
Matogrosso
É isso mesmo...
Jesuíta
Infelizmente, meus irmãos, não dispomos de comida para a caridade com os gentios. Apenas os nossos alunos têm direito às nossas refeições...
Joca
Ai meu Deus! Aluno?
Matogrosso
(Para Joca) Mas assim tá fácil! A gente só precisa brincar de escolinha com esse menino que ele vai lá e arranja comida com os Jesuítas...
Joca
(Para Matogrosso) Não é assim não! Você sabe o que significa ser aluno dos Jesuítas?
Matogrosso
O quê?
Joca
Ser Cristão!
Matogrosso
Pois então ‘bora!
Joca
Você não entendeu... Você sabe o que é ser Cristão?
Jesuíta
É renegar seus antigos costumes. Abandonar a bebida, a vida de pecado...
Matogrosso
(Para Joca) Mas é só dizer que abandona, não precisa fazer. De brincadeirinha, entendeu? (Para o padre) Eu abandono tudo isso! Agora, me dê a comida?
Jesuíta
É preciso antes conhecer a palavra de Deus... E aceitá-la em seu coração.
Joca
Eu a conheço e aceito...
Jesuíta
Mas o senhor já foi batizado em Cristo?
Joca
Na..Não senhor...
Matogrosso
(Acotovela o outro) Ei.
Joca
Que..Quero dizer, sim senhor...
Jesuíta
Mas o senhor foi ou não batizado?
Joca
Eu não sei...
Matogrosso
Foi sim, senhor! Eu me lembro como se fosse hoje!
Jesuíta
Então o senhor é um Cristão... Quer dizer que se lembra do primeiro ensinamento do Senhor?
Joca
Me lembro com a maior clareza...
Jesuíta
E qual seria esse ensinamento?
Matogrosso
(Se intrometendo) A caridade com os necessitados!
Joca
Exatamente o que eu ia dizer!
Jesuíta
Não. O primeiro ensinamento do Senhor é evitar todo o mal, a mentira, a dissimulação...
Matogrosso
Mas que menininho invocado! (...) Bom, então amanhã a gente volta aqui...(Saindo)
Joca
Isso. Vamos ajudar na construção do seu Colégio...
Jesuíta
Mas isso é maravilhoso! Todos os operários dessa obra devem assistir às aulas. Os escravos e os voluntários...
Matogrosso
Mas nós não somos escravos.
Joca
Nem voluntários.
Os Dois
Nós estamos trabalhando pelo dinheiro.
Jesuíta
Hoje levarão somente esse punhado de farinha de pau. (Dá um punhado de farinha para cada um) Amanhã, quando voltarem para freqüentar a escola do Senhor, terão direito à comida.
E assim será até que terminemos a construção do Colégio e da Igreja.
(Sai)
Joca
Ué... Mas não era só o Colégio?
Matogrosso
Ora, quem constrói um Colégio, constrói uma Igreja, constrói uma maloca...
Joca
Eu só não sei o que diabos a gente vai fazer com essa farinha de pau que o padre deu...
Matogrosso
Ora, isso é farinha de mandioca, rapaz! Com isso a gente faz uma bela tapioca.
Joca
Pipoca? O que diabo é isso?
Matogrosso
Tapioca é pão de índio. Dá sustança e faz o sujeito ficar forte que nem eu!
Joca
Então haja pão de índio, para ficar do meu tamanho...
Paolo
(Chegando) E então, conseguiram comida?
Joca
Mais ou menos. Conseguimos essa farinha, que o Matogrosso diz que dá para fazer pão de índio.
Matogrosso
Tapioca. O nome é tapioca!
Joca
A gente vai ter que assistir as aulas dos Jesuítas para poder trabalhar na obra deles... Só me faltava essa!
Paolo
Não fala isso! Os Jesuítas são instruídos... Estudaram nas melhores escolas da Europa.
Matogrosso
Meu amigo, eu já vivi quase trinta anos sem essa tal de escola e estou aqui, firme e forte...
Paolo
Mas não tem ciência! É isso que os Jesuítas podem nos dar. Progresso! Avanço! Civilização!
Matogrosso
Ai. Fiquei cansado... Vamos fazer logo essa tapioca?
(Saem)
Segunda parte – Dia de trabalho
(Matogrosso entra e toca um sino. Os outros dois saem).
Joca
Que lugar! Dormir pendurado num pano?
Paolo
Acho bom a gente fazer logo um outro cômodo. Esse Matogrosso ronca que nem um boi...
Matogrosso
Mas vocês são cheios de frescura mesmo, hein? A maloca ainda não tá pronta. A cama daqui é assim, pendurada na parede! Quem mandou não trazer a sua?
Joca
Eu queria fazer o meu desjejum, antes de ir trabalhar...
Paolo
Sobrou um pouco daquela tapioca?
Matogrosso
Não. Nosso amiguinho aí (aponta para Joca) comeu tudo. Ah, mas tem uma coisa que a gente bebe aqui que eu quero que vocês experimentem...(Sai e pega uma xícara de café)
Paolo
Hummm. Bom. Experimenta...
Joca
Arrgh! Que troço horrível!
Matogrosso
Isso é o café.
Joca
(Vai vomitar)
Matogrosso
Se for vomitar, vá lá pra trás!
Paolo
Isso. E depois, vê se lava a boca...
Joca
(Saindo) Blaargh...
Paolo
Gostei dessa bebida... Acho que isso tem futuro...
Matogrosso
Ah, isso aí não vai dar em nada não. Mas se quiser mais, eu te ensino a torrar o grão e a moer, para ficar só com o pó.
Paolo
Obrigado. Ei, escuta, já não tá na hora da gente ir para a obra?
Matogrosso
É isso mesmo! Joca! Corre! Tá na hora!
Joca
(De fora) Ai meu Deus! Arrghh! Vão vocês que eu chego depois! Arrghh!
Paolo
Vamos, Matogrosso! Senão a gente vai perder a aula.
Martim
Ah, então voltaram... Onde está o seu outro sócio?
Paolo
Ele já vem... A bebida não lhe fez bem...
Martim
(Para Matogrosso) Você andou dando cachaça para estes homens?
Matogrosso
Não senhor... Eu parei de beber faz tempo... É café, a bebida que ele está falando...
Martim
Café? O que vem a ser isso?
Paolo
É uma espécie de chá, que ele faz com umas plantas que crescem no fundo da maloca dele...
Martim
Sei. Coisas de índio...
Paolo
Mas seu Martim, nós viemos falar com o seu capataz...
Martim
Não tem capataz nenhum. Falem direto comigo.
Matogrosso
Mas nós já falamos ontem...
Paolo
Isso. A gente quer saber o que é para fazer...
Matogrosso
E quanto é que a gente vai ganhar...
Martim
Antes vocês precisam passar por uma entrevista.
Paolo
Pois então, pode fazer!
Martim
Um de cada vez!
Matogrosso
Pois então, eu vou primeiro!
Martim
O branco vem primeiro... Depois eu trato com você.
Matogrosso
Isso é que é ser uma merda mesmo! (Vai pro canto)
Martim
O senhor está familiarizado com as técnicas de construção de pau a pique?
Paolo
Não senhor... Eu trabalho com madeira... E cozinho, também...
Martim
Veja bem, estamos precisando de pessoas que estejam acostumadas a trabalhar com pau a pique.Como o senhor não tem experiência, nós estaremos lhe dando a oportunidade de fazer um estágio de seis meses, a fim de que o senhor aprenda o serviço.
Paolo
Entendi...
Martim
Neste período, o senhor estaria recebendo apenas a alimentação e a instrução oferecida gratuitamente pelos Jesuítas.
Paolo
Quer dizer que eu não vou receber dinheiro?
Martim
Assim que o senhor terminar o seu período de experiência, nós voltaremos a conversar sobre isso...
Paolo
Perfeito... Obrigado, senhor Martim!
Matogrosso
Escuta, eu tô preocupado com o Joca... Ele vai acabar se atrasando!
Paolo
Eu vou correndo até a maloca, ver se ele está bem... Daqui a pouco eu volto.
(Sai)
Martim
Muito bem. Por que você acha que nós precisamos dos seus serviços?
Matogrosso
Porque eu sou da terra e sei trabalhar com o pau a pique.
Martim
Mas nós temos escravos aqui que também sabem...
Matogrosso
Mas eu sei mais. E além disso, tenho sangue de branco, por isso sou mais esperto!
Martim
Não sei. Acho que você vai acabar criando problemas aqui.
Matogrosso
Como é? Eu não vou criar problema não. Eu só preciso de trabalho! E como o senhor não quer me deixar mais ir para Santos...
Martim
Isso depõe contra você. Você é desobediente, trapaceiro, vagabundo... Merece a forca, não um trabalho!
Matogrosso
Nada disso! Eu sou um trabalhador! Se o senhor me deixar trabalhar na obra o senhor vai ver!
Martim
Pois então eu quero ver!
Matogrosso
Tem alimentação e tem as aulas, né? Pois então deixa de lado as aulas e o senhor me paga a diferença...
Martim
Nada disso. Sem estudar, ninguém trabalha!
Matogrosso
Pois então tá certo! Eu estudo!
Martim
Então fique aqui! Daqui a pouco o padre chega, você assiste a aula e depois, ao trabalho!
Matogrosso
E depois da experiência o senhor vai me pagar, não é?
Martim
Sobre isso, conversaremos no momento oportuno...
(Sai)
Matogrosso
Num sei... Tô com uma sensação esquisita... Ai minha nossa! Cadê o Joca? O homem foi embora e ele nem foi entrevistado! Aquele bendito italiano é devagar demais! (Chega o padre) De novo esse menino?
Padre
Vamos chegando... Vamos chegando...
Matogrosso
Quando é que o professor vai chegar?
Padre
O professor sou eu...
Matogrosso
Deixe de brincadeira, rapaz! Só porque você tá aí fardado de Jesuíta tá achando que é padre, é?
Padre
Mas eu sou padre. E sou o professor de vocês, enquanto deus permitir...
Matogrosso
Pois então, desculpe seu Padre. Mas é que eu tenho dois amigos que também querem assistir a sua aula e trabalhar na sua obra.
Padre
Na obra do senhor...
Matogrosso
Não, na minha também... Mas agora eles estão vindo pra trabalhar na sua. Só que um deles passou mal e o outro foi chamar e os dois se perderam...
Padre
Eles podem se atrasar. Mas só dessa vez! Vista-se! Hoje teremos uma aula introdutória, sobre quem é o nosso Senhor e Deus...
Joca
(Chegando) Ô seu padre, eu vim trabalhar! Onde estão as pedras?
Padre
Primeiro as coisas de Deus, meu filho... No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia e as trevas cobriam tudo. E Deus disse: faça-se a luz. E a luz se fez!
Matogrosso
Ô menino, isso aí não tem nada a ver não... Lá na aldeia da onde eu vim, pajé disse que o Deus, chamado “Grande Avô”, se fez de uma papa. Depois ele fez sua esposa e os outros deuses...
Padre
Eu sou o representante de Deus na terra! Estou a serviço da verdade! Quando vocês saírem das trevas da ignorância e forem capazes de ler, verão que as palavras escritas nesse livro são as mesmas que eu estou dizendo a vocês!
Matogrosso
Olha menino, não leva a mal não... Mas é melhor você não ficar falando isso pra todo mundo não, senão vai até pegar mal pra você... O povo fala, viu?
Joca
É isso mesmo seu padre. Ao invés da gente ficar aqui perdendo tempo discutindo religião, o senhor podia ensinar logo a gente a ler e a escrever...
Padre
Silêncio! O professor aqui sou eu! É por isso que vocês aqui não progridem! Mas há um remédio, que nós descobrimos para a sua descrença na palavra do Senhor... Um remédio de acordo com a sua ferocidade... (Pega a varinha e começa a bater em Matogrosso) Você acredita no Deus único, criador de todas as coisas?
Matogrosso
Ai. Ai. Ai. Acredito, sim senhor! Pode falar pra todo mundo que eu acredito! Ai. Ai.
Padre
Que o amor divino venha pela cólera ou pela misericórdia. Quem aqui aceita a misericórdia de Deus?
Matogrosso e Joca
Eu! Eu! Eu!
Padre
Ótimo. Que a paz do Senhor esteja convosco. Bom trabalho a todos...
(Sai)
Matogrosso
Ai... Ai... Que molequinho brabo, sô... Me moeu todo!
Joca
Eu disse para você não brincar com esses padres...
Matogrosso
Ai... Mas eu não tava brincando não... Amanhã eu não falo mais nada nessa aula...
Joca
Isso. Deixa o padre falar o que ele quiser... Contanto que ele nos ensine a ler e nos deixe trabalhar na obra...
Matogrosso
Deixa esses padres falarem o que eles quiserem. Eles não vão ficar seguindo vocês pra todo lado”.
Joca
E ele não tem medo da Inquisição?
Matogrosso
O seu João diz que fura duas inquisições com as flechas dele... O povo chama ele de João Ramalho, porque a cara dele é toda cheia de barba, parecendo um monte de rama.
Joca
Eu ouvi falar dele. É o Português que casou com uma índia, não é?
Matogrosso
O seu João é que é esperto... É Português, mas conseguiu arranjar um jeito de fugir desses jesuítas...
Paolo
(Entrando) Diacho de Português! Eu te procurando por todo lado e você já está aqui na obra! A que horas vai ser a aula?
Joca
A aula já acabou. E esse aí já ganhou até o diploma... (Matogrosso mostra os machucados)
Paolo
Tá vendo! Tá vendo! Fui procurar você e acabei perdendo a aula...
(Começam a trabalhar. Matogrosso vai mostrando aos outros como se faz a mistura e como se faz a armação da construção.)
Paolo
(Assume a armação da parede) E o que é que o padre ensinou?
Joca
(Mistura a argila com o capim e o esterco) Ensinou que só ele é quem fala...
Matogrosso
(Assentando o esterco na armação) E que só tem um Deus. Que é o Deus dele.
Durante esta cena, os personagens fazem as ações da construção.
Joca
Falou do começo do mundo e que Deus escreveu tudo o que fez.
Matogrosso
E se não tá escrito, é porque é mentira.
Paolo
Isso tudo eu já sei... Eu já sou cristão... Batizado e tudo!
Joca
Pronto. Mais um cristão!
Matogrosso
E você já sabe de tudo, é? Fique em casa, trabalhando na maloca, vá fazer o seu quarto... Pra quê quer fazer essa aula?
Paolo
Pra aprender a ler e a escrever em Português.
Matogrosso
Então fala logo com o padre que ele te dispensa do lero-lero e te ensina logo a ler e a escrever...
Paolo
Eu não posso falar disso com o padre... Aliás, não posso nem ser cristão, porque não posso comungar...
Matogrosso
Comungar? O que é isso?
Paolo
Comer o corpo de Cristo. Para isso, é preciso se confessar, e eu preciso arranjar um padre que não queira me castigar pelo que eu fiz...
Joca
O que foi que você fez?
Paolo
Eu matei alguém...
Matogrosso
Grande coisa... Aqui a gente mata direto...
Joca
Quem foi que você matou?
Paolo
Uma mulher... Que apanhava do marido...
Matogrosso
Rapaz, eu não acredito nisso não! Dois homens se juntando pra dar uma surra numa mulher...
Paolo
Vamos falar de outra coisa, está bem?
Matogrosso
Falar de outra coisa....falar de outra coisa... Tô bem arranjado com esses dois... Um foge pra não ser queimado. O outro porque matou uma mulher...
Paolo
E pelo que o seu Martim falou, você também não é grande coisa! Quem é você pra ficar me julgando? Um ladrãozinho índio, que fica se achando Português... Seu mestiço!
Matogrosso
Não me provoque não, viu? Seu assassino! Venha me matar pra você ver se eu morro, venha! Seu mocinha! Mulherzinha... Venha matar homem, venha!
Joca
Fica calmo, Matogrosso. Aqui ninguém quer matar não!
Matogrosso
Seu Martim. Seu Martim... Grande merda o seu Martim... Aquele português não sabe o que é ser mestiço, não! Meu pai, nem sei quem é. Era um safado dum Português que se deitou com a minha mãe e depois fugiu. Levou um monte de índios pra ser escravo e só deixou os velhos, as grávidas e as crianças. E eu fiquei sendo o sinal da desgraça para aquela gente... Até que eu fui embora, tocar a minha vida sozinho. Eu e minha maloca... Sem tribo nem aldeia!
Paolo
Me desculpe, Matogrosso. Eu não devia ter julgado você... Isso é pecado, eu sei... Uma hora eu vou poder contar minha história pra vocês...
Matogrosso
Olhe, você conta se quiser. Não faz mal... Desculpe pelo que eu disse também... Eu nem conheço a diaba da mulher... Vai ver que a bicha dava conta de matar o marido e você também...
Joca
É isso aí... Vamos fazer as pazes e tocar a obra...
Matogrosso e Paolo apertam as mãos... Os três se abraçam... Depois de um tempo se afastam fazendo pose de macho.
Matogrosso
Eita que barulhada é essa!
Joca
É mesmo. Que será que aconteceu?
Paolo
Os escravos estão combinando alguma coisa ali. Por que será que estão alegres?
Matogrosso
Deixa eu ver se essa confusão é lá pros lados da maloca
(Sai)
Paolo
Tô com um mau pressentimento...
Joca
Nunca vi escravo trabalhar com tanta alegria...
Paolo
Minha nossa! Os padres estão correndo para todo lado!
Joca
É guerra?
Paolo
É! É guerra sim!
Paolo
Eles estão vindo pra cá! Toma, pega isso e se esconde! (Dá uma vassoura)
(Escuta o grito do índio. Pega a vassoura e se esconde atrás dela. Fica imóvel)
Índio
(Entrando) Eita que eu estou sentindo cheiro de português!
Joca
Ai meu Deus... O que será que ele está falando?
Índio
Ah se eu encontro esse Português... Eu faço assim! (Bate em Joca) Que nem eu faço com essa árvore!
Paolo
Pai nosso, que estais no céu...
Índio
Opa! Escutei a choradeira dos brancos... Acho que eles estão escondidos... Deixa eu ver se estão em cima dessa árvore... (Sobe em Joca) Não... Mas essa árvore fede demais...
Joca
Ele está me cheirando... Será que ele pensa que eu sou comida?
Índio
A carne deles deve estar podre... Que fedor! BRANCO! ONDE ESTÁ VOCÊ?
Índio
Cansei dessa brincadeira... Não quero saber de oca de padre aqui. (Chuta a obra e quebra tudo)
Joca
(Tira o disfarce) Lazarento! Está pensando que pode chegar aqui e ir quebrando o trabalho dos outros?
Índio
Opa! A árvore fedorenta é um Português! Que será que ele está falando?
A conversa entre eles é falada e gesticulada. Fazem os gestos para tentarem se entender.
Joca
Seu lazarento! Você vem aqui e quebra tudo? Por que não vem ajudar a fazer?
Índio
Você é grande como uma árvore. Mas eu te bato. (Faz gesto de bater)
Joca
Ah, entendi. Porque você é burro como uma porta... Pois pode levantar o que você destruiu. (Faz gesto de levantar)
Índio
Foi um maior que você? Pois eu pego ele e você e quebro no meio assim! (Faz o gesto de quebrar)
Joca
Filho da mãe! Disse que quebrou e que vai quebrar mais... Paolo, vem aqui ver esse índio sem vergonha...
Paolo
Cadê? Ah, é disso que a gente tava se escondendo...
Índio
Esse é o maior? Rá Rá Rá...
Paolo
Do que será que ele está rindo?
Joca
Não sei. Acho que ele está rindo da tua cara.
Paolo
Pois então eu vou rir da dele. Rá Rá Rá.
Índio
Ei, do que você está rindo? (Mostra o rosto)
Joca
Safado, disse que riu porque você é feio demais...
Paolo
Feio é você. (Faz uma careta)
Índio
Que é isso? Tá dizendo que eu sou feio? Feio é esse Português. (Aponta Joca)
Paolo
Disse que você é feio... Isso é verdade. (Faz sinal de concordar)
Índio
O branco concorda. (Percebe que Paolo está perto demais e o toca)
Paolo
Vamos parar com a conversa fiada. O senhor acha que é quem para vir estragar o trabalho dos outros?
Índio
Branco vem e pega o índio para fazer trabalho. Padre vem e amansa o índio, pro índio trabalhar sem reclamar. Índio vem e solta os outros índios.
Joca
Se quiser levar seus irmãos, pode levar. Amanhã chega outra remessa e a obra continua...
Índio
Quer dizer que Índio leva os irmãos embora e tudo fica certo.
Paolo
Certo.
Índio
Então, índio vai embora.
(Sai)
Joca
Foi embora, mas estragou nosso trabalho...
Paolo
Pelo menos ele não matou a gente...
Joca
Você entendeu o que ele disse?
Paolo
No começo não. Depois, acho que sim...
Joca
Acho que ele falou que os portugueses escravizam os índios e os padres os amansam...
Paolo
Será? Mas o seu Martim ofereceu uma mula pelo Matogrosso e mais dois índios... Acho que os índios não valem muito por aqui.
Joca
É, os índios são quase animais...
Paolo
Não... A gente não consegue conversar com um macaco. Mas conseguimos entrar num acordo com aquele índio, não foi?
Joca
É. Isso é verdade... Vai ver que são pessoas mesmo...
Matogrosso
(Entrando) Viche! Os tamoios invadiram a vila e saíram quebrando com tudo. Ainda bem que nem passaram perto da maloca.
Joca
O dia tá terminando... Daqui a pouco a gente vai embora e pode continuar a construção da biboca.
Matogrosso
Viche! Tinha me esquecido disso... Tô tão cansado... Acho melhor a gente deixar para terminar a maloca no fim de semana. No sábado.
Joca
No sábado eu não posso trabalhar...
Matogrosso
Como é que é? E vamos fazer a maloca quando? Só no domingo?
Paolo
No domingo não pode. Os padres não deixam...
Matogrosso
Mas então vai mal... Se não pode trabalhar no sábado, nem no domingo, como é que vai ser isso hein?
Paolo
A gente faz assim: primeiro assistimos à aula... Depois sai um e trabalha de manhã. Na hora do almoço, volta e aí sai um outro, que trabalha à tarde.
Matogrosso
Mas aí ficou faltando um. Ele não trabalha não?
Paolo
Trabalha. Ele é o primeiro do dia seguinte. E depois do almoço, vai o que trabalhou na manhã do primeiro dia... A gente vai fazendo escala...
Matogrosso
Pois então, ‘bora descansar, que amanhã é dia de índio... (Saem)
Terceira parte – Novos tempos
Joca e Paolo entram em cena e repetem a pantomima da construção por um tempo. Entra Matogrosso e Paolo sai. Matogrosso e Joca continuam o jogo. Sai Joca e entra Paolo. Continuam. Sai Matogrosso e entra Joca. Ficam Joca e Paolo, como no início. A cada passagem, vão aumentando a velocidade da pantomima.
Paolo
Acho que já estamos quase terminando a maloca... E o Colégio...
E a Igreja também... Você já reparou que coisa linda?
Joca
Parece que os padres vão querer celebrar uma missa de inauguração hoje... Vem um padre para ouvir a confissão de todo mundo... Estou até pensando em me converter...
Paolo
Você? Está pensando em se converter? Que legal, Joca! Você vai ser cristão, que nem eu!
Joca
Eu pensei no que o Matogrosso me falou, dessa história de deixar os padres pensarem que a gente é cristão, e cada um faz o que quer...
Paolo
Isso é pecado!
Joca
Mais ou menos... Eu vou fazer o bem, conforme os padres pedem... É que eu cansei de ficar me escondendo e fugindo, sabe? Quero ficar em paz... Então vou aceitar ser cristão.
Paolo
(Concordando) Eu também queria ficar em paz e me confessar. Queria receber o perdão de Deus... Mas não pode ser qualquer padre. Eu queria uma pessoa mais velha, não um menino, que nem esse professor...
Joca
Ora, padre é padre. É tudo igual...
Paolo
Não é não... Esses padres meninos daqui não têm muita experiência de vida. Como é que eles vão entender o que leva uma... pessoa a fazer o que eu fiz?
(Se saúdam)
Padre
Filhos... Vocês sabem que hoje, dia de São Paulo, vamos inaugurar a nossa obra.
Paolo
Nós gostaríamos que Deus tivesse a melhor casa que a gente pudesse construir...
Padre
Mas essa casa de que você fala já existe...
Paolo
E que casa é essa, seu Padre?
Padre
É o seu coração, meu filho... Deus poderia morar no coração de vocês, se vocês o aceitassem... Filhos, vocês querem se confessar?
Joca
Eu quero, seu padre. Mas queria que o senhor me garantisse que eu não vou sofrer, pelo que vou lhe contar...
Paolo
Joca, eu posso ir primeiro? Eu tô com isso entalado em mim faz tanto tempo...
Joca
Tá bom... Quando terminar, você me chama...
(Sai)
Paolo
Seu padre, eu pequei. Pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras. O que eu quero dizer, seu padre... É que... Havia uma mulher, na Itália, que era casada com um carpinteiro...
Padre
Continue...
Paolo
Essa mulher se casou muito jovem, porque o pai a havia prometido a esse homem, que era muito tosco...
Padre
Sim.
Paolo
No início do casamento, ele a tratava bem. Mas depois, sem motivo, ele passou a maltratá-la... Ele a obrigava a trabalhar na carpintaria, a carregar peso... O homem passou a bater nela... Num dia, ela apanhou tanto que ele achou que ela estivesse morta. Ela aproveitou e resolveu que ia embora... E como na Itália, não podia viver sem um homem, fingiu que era homem e fugiu para Portugal...
Padre
E essa mulher é você, não é, minha filha?
Paola
E depois eu aprendi o ofício de timoneiro e decidi encontrar um lugar aonde eu pudesse ser quem eu era. Meus únicos amigos são esses dois que estão comigo agora... Eles viraram a minha família.
Padre
Filha... Você não pode mais continuar vivendo essa situação de pecado... O casamento é coisa séria... um sacramento de Deus...
Paola
Mas o homem teria me matado, seu padre...
Padre
Mas Deus a perdoará minha filha, se você lhe fizer a promessa de nunca ter nada com outro homem, voltar a ser mulher e se dedicar a serviço do reino de Deus. Promete?
Paola
Prometo, sim Sr.
Padre
Eu te absolvo, minha filha, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Que a paz do Senhor esteja convosco... Agora, trate de arrumar um vestido bem bonito para comungar o corpo do Senhor.
Paola
Obrigada, seu padre! (Sai)
Joca
(Entrando) Seu padre, agora é a minha vez...
Padre
Pois então, meu filho, pode começar...
Joca
Seu padre, eu sou Judeu. (O Padre levanta) Mas trabalhando aqui na construção dessa Igreja e convivendo com os padres eu resolvi que queria me tornar cristão. E eu gostaria que o senhor me batizasse e que a gente já resolvesse logo essa coisa toda...
Padre
O senhor é bem direto, não é? Filho, se você aceitar o Messias, o seu processo na Santa Inquisição será arquivado e você será um cristão. Com isso, você terá vida nova.
Joca
Pois é exatamente isso o que quero. (Abaixa a cabeça) Meu nome é Joaquim.
Padre
Pois então: eu te batizo Joaquim Pereira, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Joca
Amém!
Padre
Filho. Como cristão, você deve seguir os mandamentos do Senhor e no fim do dia gostaria que o senhor e sua amiga fossem à missa...
Joca
Amiga? (Para o padre) Pode deixar seu padre. Vou à missa e vou levar meus dois amigos...
Padre
Que a paz do Senhor esteja convosco...
(Sai)
Joca
Agora eu vou ter paz! Sou um cristão! Graças a Deus...
Paola
(Entrando, vestida de mulher) E então, Joca? Está preparado para ouvir o que eu vou te dizer?
Joca
(A parte) Ué, quem é essa mulher? (Para Paola) Pois não, senhora? A senhora falou comigo?
Paola
Deixa de ser besta, Joca. Não tá me reconhecendo? Sou eu!
Joca
(A parte) Acho que está me confundindo... Que bonitinha! Pena que não tem bigodes... (Para Paola) Ah, sim... Já me lembrei da senhora...
Paola
Lembrou? Como assim? Sou eu, sua besta! Paola!
Joca
Paola? Irmã do Paolo? (A parte) Será que ele falou de mim para ela?
Paola
Falou. Ele disse que o senhor não toma banho, que quando toma é de botas e que seu pé é fedido que nem carniça...
Joca
Aquele italiano! Ele vai se ver comigo... Venha cheirar as minhas botas para ver se estão fedendo...
Paola
Deixa disso, Joca... Sou eu, o “Paolo”, que você conhece... Quero dizer, quase... Eu sou mulher.
Joca
(Escondendo a virilha, como se estivesse nu) Paolo? Meu Deus... Você virou mulher? Como foi que aconteceu isso?
Matogrosso
(Chegando) Ê Joca, arranjou uma namorada e nem me conta nada, hein?
Joca
Essa aí não é minha namorada não, sua besta...
Matogrosso
Não é não? Ah... Então deixa ela pra mim... Faz tanto tempo que eu não vejo isso que já até esqueci como é que é... E aí, princesa, vamos brincar ali na minha maloca?
Joca
Seu tonto... Vai brincar com homem, agora?
Matogrosso
Não é com você não, sua besta. Tô falando com a moça...
Paola
Acontece que a moça aqui era homem, e amigo de vocês...
Joca
Tá vendo? Essa aí era o Paolo...
Matogrosso
Como é que é? (Cobre a virilha como se estivesse nu)
Paola
Pois é. Eu sou mulher.
Matogrosso
Caramba! Agora eu entendi tudo!
Paola
Entendeu? Meu crime era esse. A mulher que eu matei...
Matogrosso
(Corta) Já sei. Você era a amante do sujeito que batia na mulher feia que só o cão. Vocês se juntaram e mataram a esposa do homem e daí você fugiu.
Joca
Ela era a esposa e matou a amante. E inventou a história toda só pra gente ficar com pena dela...
Matogrosso
Ela era o homem que matou as duas mulheres quando elas descobriram que ela não era homem coisa nenhuma.
Joca
Como é?
Matogrosso
Não sei mais... Se afasta daqui, sua diaba!
Paola
Não sejam tontos... A mulher que eu matei era eu mesma...
Matogrosso
Você se matou?
Joca
Isso é assombração! (Se abraçam com medo dela)
Paola
Não, seus bobos! Eu tive que fugir da Itália, porque eu quase morri de tanto apanhar do meu marido...
Matogrosso
Aí você se vestiu de homem e deu uma surra nele?
Paola
Não. Eu só o deixei. E me fingi de homem para poder vir nas embarcações. Aqui ele nunca mais vai me encontrar...
Joca
Por que é que você não disse logo?
Matogrosso
Tinha dito que era mulher e se arrumado assim, toda bonita, que a gente ia trabalhar até mais feliz...
Paola
Porque eu sabia que tinha pecado. “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Matogrosso
Mas aqui não tem essa besteira não. A gente nem ia ligar, contanto que você continuasse a ajudar a gente com a maloca...
Joca
Mas os padres não permitem isso...
Matogrosso
Ah, pois eu também tenho uma novidade para contar pra vocês...
Paola
Você também é mulher?
Matogrosso
Venha ver se eu sou mulher, venha! Eu sou macho, minha filha! Muito macho!
Joca
Fala logo, Matogrosso!
Matogrosso
Eu tava dizendo, antes dessa aí... Virou mulher agora e já acha que pode ficar zombando dos outros... Mas veja, mesmo!
Paola
O que foi? Que é que você quer contar?
Matogrosso
A maloca já tá toda pronta. Agora cada um vai ter o seu quarto, a gente vai poder cozinhar na cozinha, se banhar no banheiro...
Paola
Que beleza!
Matogrosso
E vocês podem ficar morando lá o tempo que vocês quiserem, porque agora que essa obra acabou vai ser difícil da gente arranjar trabalho.
Joca
Matogrosso, você já está sabendo da expedição do Seu Martim pra procurar ouro no meio da mata?
Matogrosso
Pois eu já fui falar com seu Martim e ele me disse que índio não entra. E não adiantou eu falar que não sou índio... Ele me mandou correr...
Joca
Quer dizer que vocês não vão?
Matogrosso
Vá você, homem! Que você não nasceu grudado com a gente não...
Joca
Matogrosso, o que é que você vai fazer?
Matogrosso
Quando seu Martim for para essa tal dessa expedição... eu desço lá pra Santos e trago mais uns pra cima... Enquanto isso, a Paola toma conta da maloca.
Paola
É... Matogrosso... (Encabulada)
Joca
Paola, Matogrosso, Seu Martim disse pra não deixar nada pra trás... Por isso, eu queria dar para vocês a minha parte na maloca. (Percebe que acertou)
Matogrosso
E o nosso plano de construir as três malocas?
Joca
Vai ter que ficar pra outro dia, quem sabe... ... Adeus (Sai)
Paola e Matogrosso
Até mais Joca!
Paola
Lá vai o Joca... Vou sentir a falta dele!
Matogrosso
Eu também... É, italianinha... Parece que agora ficamos só nós dois... Não quer deixar pra lá essa história de fazer outra maloca? A gente vai morando junto...
Paola
Não posso, Matogrosso. O padre me proibiu de viver com outro homem.
Matogrosso
E você vai morar onde agora?
Paola
Não sei... Estou pensando em me oferecer para trabalhar na casa dos padres. Eu cozinho para eles e faço a limpeza. Em troca eles me dão instrução e moradia... O que você acha?
Matogrosso
Você é quem sabe... Mas eu não tô achando isso certo não... Que é que eu vou fazer sem vocês dois, hein? Eu queria fazer a maloca de vocês bem pertinho da minha, pra gente não ter que se separar! E agora vocês me vêm com essa...
Martim
(Entrando) Ali, ali adiante onde está aquela maloca. Pode derrubar e ali vai ser o mercado.
Matogrosso
Êpa. Êpa! Aquela maloca ali tem dono! Não vão derrubar nada não senhor!
Paola
É isso aí, Seu Martim! A maloca que o senhor apontou tem dono. Vá construir o seu mercado em outro lugar.
Martim
Fique quieta mulher. Eu estou falando com o índio. Onde é que está a escritura daquela maloca?
Matogrosso
Não tem isso não. O lugar tava vazio e eu fui lá e levantei minha maloca, junto com meus amigos...
Martim
Isso quer dizer que o senhor é invasor e a maloca vai abaixo!
Matogrosso
Seu Martim, eu sei que o senhor não vai com a minha cara e tudo o mais. Mas destruir minha maloca, depois que eu trabalhei pro senhor, de graça, nessa obra? Não precisa disso não...
Martim
Não é nada pessoal, mestiço. Você precisa entender que o progresso é o destino dessa vila. É preciso construir um mercado. E o melhor lugar é aquele em que você construiu a sua maloca, porque fica perto do rio...
Matogrosso
Eu sei. Eu sei. Perto do rio, num lugar bom que a enchente não pega e fica perto dos barcos...
Martim
Um lugar excelente. Aliás, muito boa a sua visão de negócios... Um homem à frente do seu tempo...
Matogrosso
É. À frente e alguém atrás, só me lascando!
Martim
Ora. Vá o senhor e sua esposa ao meu escritório e poderemos tratar da escritura de um novo loteamento...
Paola
Se o senhor vai derrubar essa maloca é justo que o senhor construa outra.
Martim
Vocês têm somente o dia de hoje para tirarem os seus pertences de lá. Nós derrubaremos a maloca, construiremos o mercado, que é o mais importante para a vila agora. Não quero saber de feiras ao ar livre. A partir de agora, quem quiser vender suas coisas vai ter que vender no mercado.
Depois conversamos sobre essa maloca.
(Sai)
Matogrosso
Como é? Ei, volte aqui que eu não terminei! Ninguém vai derrubar nada, entendeu? A maloca é minha! Eu a construí com o meu trabalho! (Pega uma garrafa de cachaça) Ninguém venha derrubar não! Se vierem eu flecho!
Paola
O homem está com a razão. Nós arruma outro lugar!
Matogrosso
Esses brancos de uma figa! Vão acabar com a minha maloca, desgraçados! Mas eu vou criar coragem... (Bebe) Eu vou matar aquele desgraçado daquele seu Martim! (Bebe) Vai chegar o dia em que quem vai mandar sou eu! (Bebe) Vai vir uma caravela e que vai me levar pro outro mundo... (Bebe) E quando eu chegar lá, vou mandar em todos esses brancos... (Bebe) Uma terra onde o índio é quem manda! (Saindo)
Ator 1
(Entrando) E como a caravela de Matogrosso não chegava nunca, ele saiu pelas matas desse país, em busca dela, atravessando as terras de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Voltou pra vila, agora um gigante chamado São Paulo, cheio de máquinas que pareciam pessoas. Pensou que o gigante é quem escondia o barco e então lutou com ele... A cada batalha perdida, mudava de cor. Virou, branco, preto, índio, caboclo, mameluco, depois mulato... Depois se misturou tanto, com tantas cores diferentes, que perdeu o nome do que era e ficou sendo brasileiro... Matogrosso ainda briga com o gigante, sempre na esperança de que um dia vai vencê-lo e libertar a caravela que vai levá-lo ao paraíso... (Sai)
Atriz 2
E Joca pegou em armas e se meteu a procurar ouro. Foi ao Norte, e ao Nordeste. Perdeu-se no meio do país. Fugiu dos índios e se escondeu dos portugueses, num lugar em que achou ouro. Enriqueceu. Comprou terras. Voltou para São Paulo de Piratininga com dentes de ouro e as mesmas botas fedidas que tirou quando chegou. Um dia, sem razão aparente, sentiu saudades do tal café. Botou na cabeça que ia conseguir sementes com os negros e embarcou noutra viagem. Andou tanto que as botas se gastaram e ele as perdeu. E o povo, pra dizer que alguém morava longe passou a dizer “Lá onde o Joca perdeu as botas”. Arranjou uma mulher com bigodes, que era índia. Seu bisneto virou barão. E o tataraneto, industrial... (Sai)
Ator 3
Paola foi ficando com os padres e pegando gosto pela catequese. Ela que passou a vida inteira fazendo trabalho de homem, achou que podia ser padre. Aprendeu a ler a Bíblia e a escrever em latim. Mas não teve jeito... Não pôde usar batina... E ela, que não era de se conformar, saiu pelo país ensinando os índios a ler e a escrever. E aprendeu deles as suas histórias, seu folclore, suas danças. Anotava tudo isso em muitos papéis, muitas pinturas, porque queria escrever uma Bíblia com a história da gente que vive e trabalha nessa terra. Um dia, Paola anotava a história contada por um índio e descobriu, da boca dele, que a igreja que ajudou a construir tinha sido destruída e reconstruída. Naquela noite, ela sonhou que estava trabalhando na reconstrução da igreja e encontrava seus dois amigos...
Joca
(Entrando) Eita que hoje eu tava me lembrando daquela nossa idéia de maloca...
Matogrosso
E eu também... Me deu uma saudade danada daquele tempo em que a gente vivia lá.
Paola
É... Era uma maloca querida aquela, hein?
Joca
É. A finada maloca...
Matogrosso
Saudosa. Saudosa maloca...
Joca
Gostei... Saudosa maloca. Maloca querida...
Matogrosso
Saudosa maloca... Maloca querida... Isso dá música... Saudosa maloca, maloca querida, din din donde...
Paola
Donde nóis passemo dias feliz das nossas vida.
Joca
Fechou! Vamos de novo...
Os três
Saudosa maloca. Maloca querida. Din din donde nós passemo dias feliz das nossas vidas.