terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

A construção

Personagens:

Ator 1, Joca (Português), Martim Afonso

Atriz 2, Paolo (Italiano), Jesuíta

Ator 3, Matogrosso (Mameluco), Dona da Pensão, Índio, Padre


Prelúdio

(Os atores entram e preparam o palco para a encenação)


Ator 3- (Com um papel na mão) “Se o senhor não está lembrado, dá licença de eu contar. Aqui onde agora está, esse edifício alto tinha uma clareira na beira dum riacho. Foi aqui seu moço que eu, Matogrosso e o Joca, construímos nossa maloca”.

Atriz 2 - O ano em que esta carta foi escrita era 1623. Há uma enorme confusão quanto à procedência do autor. Alguns pesquisadores afirmam que a carta foi escrita por uma mulher. Outros afirmam que isso é impossível, pois não se tem registro de que as mulheres da época sabiam ler e escrever...

Ator 1 - O documento em questão conta as estranhas aventuras por que passaram um português e um italiano que chegaram a então Vila de Piratininga, no ano de 1553, trazidos pela mão de um nativo... É o nascimento desta Vila, visto pelos olhos destes três homens, a história que iremos contar.


Primeira parte – A chegada

(O Mameluco vem à frente, seguido pelos outros dois: o Português e o Italiano. É ele quem apresenta o povoado)


Português

Ai que diabos! Já devemos ter andado bem umas dez léguas no meio desse mato grosso!

Italiano

E esse mestiço disse que era pertinho.

Português

Ei amigo...(Para o italiano) Como é que ele chama?

Italiano

Sei lá. Não perguntei...


Português

Ô amigo, qual é o teu nome?


Mameluco

Caribóca. (Os outros dois não entendem) Mameluco.


Português

Maluco? Matuluco? Matoloco? Vou te chamar de Matogrosso...


Matogrosso

Tá bom. Pode ser... O que vocês querem saber mesmo?


Italiano

A gente quer saber se falta muito...


Matogrosso

É logo ali... Tá vendo?


Italiano

Faz dois dias que estamos vendo...


Matogrosso

Eu devia ter deixado esses dois cortando cana...


Italiano

Que caminho desgraçado... Vocês não sabem o que é estrada não?

E se nos pegam andando por essa trilha?


Matogrosso

Quem? Os portugueses ou os índios?


Português

Índios? Que índios?


Italiano

Você não disse que o caminho era seguro?


Matogrosso

E é. Mas se os índios nos pegam...


Português

Ai meu Deus! Viramos comida!


Matogrosso

Quieto, diacho! Não vai acontecer nada. O pior é se a portuguezada descobre que a gente se embrenhou no mato...


Italiano

Ora, o que vão fazer? Vão nos desterrar de novo?


Português

Não. A nova lei diz que devemos ser enforcados...


Italiano

Tô dizendo que é melhor voltar...


Matogrosso

Espera... Que cheiro é esse? É chuva!


Português

É melhor procurarmos algum abrigo. Podemos esperar a chuva passar...


Matogrosso

É melhor a gente apertar o passo, porque se chover, o rio vai encher e não vamos chegar do outro lado...


(Atravessam o rio. Percebem a mudança da paisagem)


Matogrosso

Muito bem, meus senhores, aqui estamos nós: Campos de Piratininga. Este é o rio Tamanduateí. No outro lado, o Anhangabaú.


Italiano

Que beleza! Até que enfim uma cidade!


Português

Não chega a ser grande coisa. Mas é melhor que andar no mato...


Italiano

Nossa... Estou quebrado! Preciso arranjar um lugar para dormir.


Português

Eu também. Estou todo moído.


Matogrosso

Se vocês estão procurando lugar para dormir, as casas da vila ficam ali em cima.


Italiano

E você, para onde vai?


Matogrosso

Eu vou trabalhar na minha maloca.


Português

O que vem a ser paçoca?


Matogrosso

MALOCA. Mafuá, pico, duas teia, morada.


Italiano

Ah, sua casa?


Matogrosso

Que é isso, seu moço... Num é casa ainda não... Eu comecei a construir ela perto do rio, num lugar bom que a enchente não pega e fica perto dos barcos... Já dá pra dormir, mas ainda não ficou pronta, que eu não tenho dinheiro. Aliás, falando nisso, paguem o meu serviço...


Português

São cem cobres, não é?


Matogrosso

Cem o quê? Eu disse cento e vinte! De cada um!


Italiano

Toma. Te dou cem e fico te devendo vinte.


Matogrosso

(Contando) Ei, Português, aqui só tem noventa!


Português

Por isso que é pobre! Não pode nem deixar um desconto para o freguês... Toma aqui os teus dez.


Matogrosso

Agradecido. Precisando de qualquer coisa, mande chamar o Mameluco. Aliás, chamem Matogrosso que aí eu já sei que são vocês. (aperta a mão dos dois e sai).

Italiano

Vamos até a vila procurar algum lugar para dormir.


Português

Eu vou tirar as botas, não estou agüentando mais. (Senta) Faz uns vinte dias que eu não tiro a bota nem para dormir.


Italiano

Deixa que eu te ajudo. (Pega as botas) Minha nossa, que mau cheiro! Tem alguma coisa morta dentro da bota!


Português

Não é nada! É o pé que está fedendo. (O Italiano puxa as botas do Português)


Italiano

Você não toma banho não? Não precisa fazer que nem essa gente daqui, que toma banho todo dia. Mas tem que tomar uma vez por semana...


Português

Taí. Hoje vou tomar banho... E lavar os pés também.


Italiano

É melhor você lavar as botas também. Se não um urubu vai comer.


Português

Ô da casa! Ô da casa! Queremos pouso!


Italiano

E comida! E banho, também!


Dona da Pensão

Que é que é?


Português

Somos dois cidadãos da Europa e estamos procurando pouso aqui nestes Campos de Piratininga.


Dona da Pensão

Ah sim... Aqui é assim, você paga e a gente sorri.


Italiano

E quanto custa?


Dona da Pensão

Cinqüenta cobres por dia. Mais dez, se quiser tomar banho e mais vinte, se quiser almoço.


Português

Cinqüenta cobres, por quarto, banho e refeição? Isso é um absurdo!


Dona da pensão

São oitenta cobres! Cento e sessenta, se contarmos os dois!


Italiano

Senhora, tenha piedade. Acabamos de chegar. Faça tudo por cem cobres...


Português

Dou oitenta! Pelos dois!


Dona da Pensão

Isso aqui não é casa de caridade! Se quiser caridade, vá procurar os jesuítas!

(Sai)


Português

Que diaba ruim de negociar! Já estou vendo que essa vila não vai para frente...


Italiano

A culpa é sua! Por que não aceitou os cem cobres?


Português

Ora, pois! Porque eu não tinha!


Italiano

Assim vai mal! Será que tudo aqui é caro assim?


Português

Vamos precisar logo de um trabalho!


Italiano

Eu só sei cuidar de navio... Mas aqui não tem serviço pra mim.


Português

Eu sou pedreiro.


Italiano

Eu também trabalho um pouco com madeira. Ah, já sei: podemos fazer uma casa, então... Como o tal do Matogrosso. Vamos procurar o mestiço e ver se ele precisa de ajuda. A gente troca trabalho por moradia. E só vai precisar gastar com comida...


Matogrosso

(Chegando como se tivesse acabado de tomar banho) Olha aí a minha freguesia!


Português

Boas noites!


Italiano

Seu Matogrosso, precisamos da sua ajuda!

Matogrosso

Mas nem acabaram de me pagar ainda e já querem outro serviço! Desse jeito vou a falência!


Português

Estamos dispostos a sermos seus sócios...


Italiano

É isso mesmo. Queremos ajudá-lo a construir a sua moradia...


Português

No seu empreendimento chamado mafúncia...


Italiano

Em troca de hospedagem.


Matogrosso

Ah, vocês vão me ajudar com a maloca! Gostei da idéia!


Português

Mas o senhor vai ter que nos trazer as pedras para que possamos construir...


Matogrosso

Trazer pedra? Eu? Ficou louco? Se eu quisesse pegar no pesado tinha ficado em Santos.


Italiano

Fica quieto. Quer perder essa pensão também... Se você nos ensinar, podemos fazer a casa de barro mesmo, como os índios daqui.


Matogrosso

Olha aí o meu plano: eu vou ensinar vocês como trabalhar com o pau a pique e vocês me ajudam a acabar de construir a minha maloca. Depois, vão procurar trabalho... E aí é cada um pro seu lado.


Português

O senhor não entendeu.


Italiano

Isso mesmo.


Português

Seremos seus sócios.


Italiano

Nós o ajudamos a construir a maloca e moramos os três nela...


Matogrosso

Mas que confusão! Vai ficar parecendo uma oca, todo mundo misturado... Num gostei disso não... Aqui não tem espaço pra nós três...


Português

Pois então fazemos assim: nós três vamos fazendo a bitoca e enquanto isso nós vamos morando nela.


Italiano

Um ajuda o outro. Um mutirão.


Matogrosso

Tá bom, tá bom.... Mas essa primeira já é a minha!


Português

Então somos sócios: Joca, Paolo e Matogrosso associados.


Matogrosso

Isso! Então, ‘bora trabalhar.


Paolo

Matogrosso, você tem algum lugar aqui na sua casa onde a gente possa tomar banho?


Matogrosso

Pois tome ali no rio, que ninguém aqui quer ver pimba não!


Joca

Então vamos lá.


Paolo

Vai você primeiro. Eu vou logo depois.


Matogrosso

Ora, vão logo os dois juntos, que o rio é grande, a gente já acaba com essa história de banho e já começa logo com o serviço.


Paolo

(Constrangido) Eu prefiro ir sozinho, depois.


Joca

Então, vou lavar-me.

(Sai)



Paolo

Enquanto isso, vou fazendo a comida, que tal?


Matogrosso

Com o quê?


Paolo

Não tem farinha de trigo, nem ovos, nem sal?


Matogrosso

Tenho não. Eu cheguei agora, não consegui comprar nada.


Paolo

Pois então vá comprar...


Matogrosso

Num tenho dinheiro...


Paolo

Mas nós não pagamos o seu serviço agora mesmo?


Matogrosso

Mas eu tinha umas pinduras pra pagar e sobrou bem pouquinho.


Paolo

Mas então juntamos os pouquinhos e compramos alguma coisa...


Matogrosso

Mas e amanhã? Se eu te der esse pouquinho, amanhã vou ficar sem.


Paolo

Amanhã a gente arruma um trabalho e compra mais comida. Vamos.


Matogrosso

(Segue o outro) Arrumar trabalho? E quem vai construir a maloca?


Paolo

Nós mesmos. A gente trabalha numa parte do dia e na outra constrói a maloca.


Matogrosso

Vai ficar uma beleza mesmo essa maloca! A gente cansado do serviço e fazendo ela de qualquer jeito depois...


Paolo

Você sabe fazer o quê?


Matogrosso

Meu negócio é não fazer nada! Mas de vez em quando eu desço lá pra Santos e trago um pessoal para cá, pelas trilhas dos índios.


Paolo

Pois então é isso! O senhor volta até Santos e traz mais pessoas. Cobra mais caro!


Matogrosso

Olha só! Me devendo vinte contos e falando em cobrar mais caro...


Paolo

Ora, então faz mais viagens.


Matogrosso

Não posso porque estão falando que os índios estão de tocaia para atacar a vila. E você, sabe fazer o quê?


Paolo

Lá na Itália eu cozinhava. E aprendi a trabalhar um pouco com madeira, porque o meu mari(...), o meu pai... era carpinteiro.


Matogrosso

Ô Seu Martim!


Martim

Que queres?


Matogrosso

Esse tipo está a procura de trabalho, seu Martim.


Martim

Não estás longe demais da tua aldeia, índio?


Matogrosso

Não sou índio não senhor! Eu sou filho de Português como o senhor...


Paolo

Senhor Martim, eu e meus sócios estamos à procura de trabalho honesto.


Martim

Quem são teus sócios?


Matogrosso

Eu e o Português Joaquim.


Martim

(Para Paolo) Se esse aqui faz parte da tua sociedade, acabou-se o trabalho honesto...


Paolo

Não diga isso. Esse homem é um sujeito corajoso, ele até nos trouxe de Santos até aqui pelas trilhas dos índios.


Matogrosso

Rapaz, não diga isso não, que é a mulher dele quem não deixa a gente subir!


Martim

Quer dizer que você ainda não parou com essa história de ser guia na trilha dos índios... Acho que vou ter que te enforcar...


Matogrosso

Tá vendo só? Agora eu vou me lascar!


Paolo

Ele está arrependido, Sr. Martim. Disse que agora vai arranjar um outro trabalho.


Matogrosso

Eu não quero trabalho, não senhor!


Martim

Ah. Prefere então a forca!


Matogrosso

Diga logo o que tenho para fazer...


Martim

Fiz um acordo com os Jesuítas que por aqui estão: ajudaríamos os padres a construírem uma escola para ensinarem o Português para os índios dessa terra.(Para Paolo) Pegue esse e mais dois índios que eu troco os três por uma mula.


Paolo

Eu e meus dois amigos somos construtores. O Matogrosso aqui tá construindo uma maloca, eu trabalho com madeira e o Português era pedreiro.


Martim

Muito bem! Leve esse índio e seu amigo Português para falar com o meu capataz. Se ele aprovar, vocês poderão trabalhar na obra do Colégio.

(Sai)



Paolo

Muito agradecido, senhor! (Para Matogrosso) Está vendo? É assim que se arranja trabalho!


Matogrosso

Bela lição! Arranjar trabalho... Eu queria é aprender a comer sem ter que trabalhar, que nem o seu Martim e os Jesuítas... Eu dormindo e a maloca se levantando sozinha...


Paolo

Mas que merda! Me esqueci da comida... Podia ter pedido um adiantamento ao tal Martim...


Matogrosso

Rapaz, não brinque com esse Martim não que ele lhe coloca no prato de algum índio... Já não tá bom ele lhe arranjar um serviço?


Paolo

E se a gente fosse falar com os Jesuítas? Na Itália os padres costumam dar comida para quem precisa...


Matogrosso

Pois aqui eu não conheço essa história não...


Paolo

Não custa a gente tentar...


Matogrosso

Pois então vamos esperar o Joca. Os padres falam enrolado que nem ele. Acho que eles vão se entender...


Paolo

Mas a gente não conseguiu falar com o Sr Martim?


Matogrosso

Seu Martim já é quase índio. É mais fácil de conversar com ele. Os padres falam dum jeito que não dá pra entender nada...


Joca

(Entrando) Que beleza! Lavei até as botas...


Paolo

Mas você tomou banho?


Joca

Ora! É claro que sim! E onde está a comidinha?


Matogrosso

Não tem. Mas eu e o Paolo aqui estamos pensando que você podia ir conversar com os Jesuítas para ver se eles não podem dar.


Joca

Com os Jesuítas? Não posso! Não posso! Eu... eu... não sou cristão...


Matogrosso

Mas não tem problema isso não, rapaz! E por acaso eu sou cristão? Você vai lá e faz os sinais dos bichos e pede comida...


Joca

Mas você é índio. (Matogrosso olha enfezado) Ou quase. Ninguém espera que você seja cristão. Mas comigo, é diferente. Ora, vão vocês! Aliás, por que não foram ainda?


Paolo

Porque a gente estava te arranjando um trabalhinho...


Joca

Um trabalho? Que maravilha! Onde?


Paolo

O Matogrosso te explica tudo enquanto eu vou tomar meu banho...


(Sai)


Matogrosso

Tem algum tempo que esses padres Jesuítas chegaram por aqui e botaram na cabeça que todo mundo tem que virar cristão. E agora eles resolveram que vão construir um colégio aqui em Piratininga.


Joca

E para quê eles querem fazer esse Colégio?


Matogrosso

Pra ensinar o Português para os índios.e aquela religião deles no meio disso tudo, entendeu?


Joca

Viu? É disso que eu estou falando... Eles ensinam o Português mas na verdade querem que todo mundo vire cristão...


Matogrosso

Isso. E dizem que até conseguiram que alguns índios parassem de comer gente...


Joca

Isso é bom... Mas o que acontece com os que não querem ser cristãos, hein?


Matogrosso

Não sei não. Vai ver que é mandado embora da vila, sei lá.


Joca

Ai! Ai! Ai! Já tive que fugir de Portugal por isso. Agora vou fugir daqui... Onde é que vou parar? Não falo com Jesuítas...


Matogrosso

Acontece que os Jesuítas falam assim, meio enrolado, que nem você...


Joca

Eu não falo enrolado. Quem fala é você.


Matogrosso

(De uma vez só) Rapaz, e eu lá falo enrolado, rapaz. Eu falando todo mundo entende. Agora você não tem jeito não. Fala, fala e não sai daí. Empaca que nem uma mula velha na estrada. Embola a boca toda parece que tem ovo na boca igualzinho aos danados do Jesuítas.

Joca

(De uma vez só) Pois olhe aí quem é que fala enrolado. Só pode ser mesmo um índio vira-lata para falar dessa maneira.


Matogrosso

Isso aí eu entendi danado!


Joca

Pois então vá se entender com os Jesuítas!


Matogrosso

Rapaz, deixe de ser mal agradecido! Eu não tô lhe deixando morar na minha maloca? Você não tava ali lavando seus particular e a gente não tava aqui arranjando um trabalhinho pra você? Você vai lá e finge que quer ser cristão e pronto... Você acha que os padres vão saber quem você é? Sabem nada!


Joca

Tudo bem então... Mas você vem comigo... E se eles me descobrirem, a gente corre!


Matogrosso

Então ‘bora! Olha só... Um menino vestido de padre... Ei menino, onde é que moram os Jesuítas?


Jesuíta

Boas noites, meus filhos queridos...


Joca

No...Noite, seu padre.


Matogrosso

Diga logo a ele que a gente quer comida...


Joca

Se.. Seu Padre...


Jesuíta

Já entendi meu filho... Vocês estão famintos, não é?


Matogrosso

É isso mesmo...


Jesuíta

Infelizmente, meus irmãos, não dispomos de comida para a caridade com os gentios. Apenas os nossos alunos têm direito às nossas refeições...


Joca

Ai meu Deus! Aluno?


Matogrosso

(Para Joca) Mas assim tá fácil! A gente só precisa brincar de escolinha com esse menino que ele vai lá e arranja comida com os Jesuítas...


Joca

(Para Matogrosso) Não é assim não! Você sabe o que significa ser aluno dos Jesuítas?


Matogrosso

O quê?


Joca

Ser Cristão!


Matogrosso

Pois então ‘bora!


Joca

Você não entendeu... Você sabe o que é ser Cristão?


Jesuíta

É renegar seus antigos costumes. Abandonar a bebida, a vida de pecado...


Matogrosso

(Para Joca) Mas é só dizer que abandona, não precisa fazer. De brincadeirinha, entendeu? (Para o padre) Eu abandono tudo isso! Agora, me dê a comida?


Jesuíta

É preciso antes conhecer a palavra de Deus... E aceitá-la em seu coração.


Joca

Eu a conheço e aceito...


Jesuíta

Mas o senhor já foi batizado em Cristo?


Joca

Na..Não senhor...


Matogrosso

(Acotovela o outro) Ei.


Joca

Que..Quero dizer, sim senhor...


Jesuíta

Mas o senhor foi ou não batizado?


Joca

Eu não sei...


Matogrosso

Foi sim, senhor! Eu me lembro como se fosse hoje!


Jesuíta

Então o senhor é um Cristão... Quer dizer que se lembra do primeiro ensinamento do Senhor?


Joca

Me lembro com a maior clareza...


Jesuíta

E qual seria esse ensinamento?


Matogrosso

(Se intrometendo) A caridade com os necessitados!


Joca

Exatamente o que eu ia dizer!


Jesuíta

Não. O primeiro ensinamento do Senhor é evitar todo o mal, a mentira, a dissimulação...


Matogrosso

Mas que menininho invocado! (...) Bom, então amanhã a gente volta aqui...(Saindo)


Joca

Isso. Vamos ajudar na construção do seu Colégio...


Jesuíta

Mas isso é maravilhoso! Todos os operários dessa obra devem assistir às aulas. Os escravos e os voluntários...


Matogrosso

Mas nós não somos escravos.


Joca

Nem voluntários.


Os Dois

Nós estamos trabalhando pelo dinheiro.


Jesuíta

Hoje levarão somente esse punhado de farinha de pau. (Dá um punhado de farinha para cada um) Amanhã, quando voltarem para freqüentar a escola do Senhor, terão direito à comida.

E assim será até que terminemos a construção do Colégio e da Igreja.

(Sai)



Joca

Ué... Mas não era só o Colégio?


Matogrosso

Ora, quem constrói um Colégio, constrói uma Igreja, constrói uma maloca...


Joca

Eu só não sei o que diabos a gente vai fazer com essa farinha de pau que o padre deu...


Matogrosso

Ora, isso é farinha de mandioca, rapaz! Com isso a gente faz uma bela tapioca.


Joca

Pipoca? O que diabo é isso?


Matogrosso

Tapioca é pão de índio. Dá sustança e faz o sujeito ficar forte que nem eu!


Joca

Então haja pão de índio, para ficar do meu tamanho...





Paolo

(Chegando) E então, conseguiram comida?


Joca

Mais ou menos. Conseguimos essa farinha, que o Matogrosso diz que dá para fazer pão de índio.



Matogrosso

Tapioca. O nome é tapioca!


Joca

A gente vai ter que assistir as aulas dos Jesuítas para poder trabalhar na obra deles... Só me faltava essa!


Paolo

Não fala isso! Os Jesuítas são instruídos... Estudaram nas melhores escolas da Europa.


Matogrosso

Meu amigo, eu já vivi quase trinta anos sem essa tal de escola e estou aqui, firme e forte...


Paolo

Mas não tem ciência! É isso que os Jesuítas podem nos dar. Progresso! Avanço! Civilização!


Matogrosso

Ai. Fiquei cansado... Vamos fazer logo essa tapioca?

(Saem)





Segunda parte – Dia de trabalho

(Matogrosso entra e toca um sino. Os outros dois saem).



Joca

Que lugar! Dormir pendurado num pano?


Paolo

Acho bom a gente fazer logo um outro cômodo. Esse Matogrosso ronca que nem um boi...


Matogrosso

Mas vocês são cheios de frescura mesmo, hein? A maloca ainda não tá pronta. A cama daqui é assim, pendurada na parede! Quem mandou não trazer a sua?


Joca

Eu queria fazer o meu desjejum, antes de ir trabalhar...


Paolo

Sobrou um pouco daquela tapioca?


Matogrosso

Não. Nosso amiguinho aí (aponta para Joca) comeu tudo. Ah, mas tem uma coisa que a gente bebe aqui que eu quero que vocês experimentem...(Sai e pega uma xícara de café)


Paolo

Hummm. Bom. Experimenta...


Joca

Arrgh! Que troço horrível!


Matogrosso

Isso é o café.


Joca

(Vai vomitar)

Matogrosso

Se for vomitar, vá lá pra trás!


Paolo

Isso. E depois, vê se lava a boca...


Joca

(Saindo) Blaargh...


Paolo

Gostei dessa bebida... Acho que isso tem futuro...


Matogrosso

Ah, isso aí não vai dar em nada não. Mas se quiser mais, eu te ensino a torrar o grão e a moer, para ficar só com o pó.


Paolo

Obrigado. Ei, escuta, já não tá na hora da gente ir para a obra?


Matogrosso

É isso mesmo! Joca! Corre! Tá na hora!


Joca

(De fora) Ai meu Deus! Arrghh! Vão vocês que eu chego depois! Arrghh!


Paolo

Vamos, Matogrosso! Senão a gente vai perder a aula.




Martim

Ah, então voltaram... Onde está o seu outro sócio?


Paolo

Ele já vem... A bebida não lhe fez bem...


Martim

(Para Matogrosso) Você andou dando cachaça para estes homens?


Matogrosso

Não senhor... Eu parei de beber faz tempo... É café, a bebida que ele está falando...


Martim

Café? O que vem a ser isso?


Paolo

É uma espécie de chá, que ele faz com umas plantas que crescem no fundo da maloca dele...


Martim

Sei. Coisas de índio...


Paolo

Mas seu Martim, nós viemos falar com o seu capataz...


Martim

Não tem capataz nenhum. Falem direto comigo.


Matogrosso

Mas nós já falamos ontem...


Paolo

Isso. A gente quer saber o que é para fazer...


Matogrosso

E quanto é que a gente vai ganhar...


Martim

Antes vocês precisam passar por uma entrevista.


Paolo

Pois então, pode fazer!


Martim

Um de cada vez!


Matogrosso

Pois então, eu vou primeiro!


Martim

O branco vem primeiro... Depois eu trato com você.


Matogrosso

Isso é que é ser uma merda mesmo! (Vai pro canto)


Martim

O senhor está familiarizado com as técnicas de construção de pau a pique?


Paolo

Não senhor... Eu trabalho com madeira... E cozinho, também...


Martim

Veja bem, estamos precisando de pessoas que estejam acostumadas a trabalhar com pau a pique.Como o senhor não tem experiência, nós estaremos lhe dando a oportunidade de fazer um estágio de seis meses, a fim de que o senhor aprenda o serviço.


Paolo

Entendi...


Martim

Neste período, o senhor estaria recebendo apenas a alimentação e a instrução oferecida gratuitamente pelos Jesuítas.


Paolo

Quer dizer que eu não vou receber dinheiro?


Martim

Assim que o senhor terminar o seu período de experiência, nós voltaremos a conversar sobre isso...


Paolo

Perfeito... Obrigado, senhor Martim!


Matogrosso

Escuta, eu tô preocupado com o Joca... Ele vai acabar se atrasando!


Paolo

Eu vou correndo até a maloca, ver se ele está bem... Daqui a pouco eu volto.

(Sai)



Martim

Muito bem. Por que você acha que nós precisamos dos seus serviços?


Matogrosso

Porque eu sou da terra e sei trabalhar com o pau a pique.


Martim

Mas nós temos escravos aqui que também sabem...


Matogrosso

Mas eu sei mais. E além disso, tenho sangue de branco, por isso sou mais esperto!


Martim

Não sei. Acho que você vai acabar criando problemas aqui.


Matogrosso

Como é? Eu não vou criar problema não. Eu só preciso de trabalho! E como o senhor não quer me deixar mais ir para Santos...


Martim

Isso depõe contra você. Você é desobediente, trapaceiro, vagabundo... Merece a forca, não um trabalho!


Matogrosso

Nada disso! Eu sou um trabalhador! Se o senhor me deixar trabalhar na obra o senhor vai ver!


Martim

Pois então eu quero ver!


Matogrosso

Tem alimentação e tem as aulas, né? Pois então deixa de lado as aulas e o senhor me paga a diferença...


Martim

Nada disso. Sem estudar, ninguém trabalha!


Matogrosso

Pois então tá certo! Eu estudo!


Martim

Então fique aqui! Daqui a pouco o padre chega, você assiste a aula e depois, ao trabalho!


Matogrosso

E depois da experiência o senhor vai me pagar, não é?


Martim

Sobre isso, conversaremos no momento oportuno...

(Sai)


Matogrosso

Num sei... Tô com uma sensação esquisita... Ai minha nossa! Cadê o Joca? O homem foi embora e ele nem foi entrevistado! Aquele bendito italiano é devagar demais! (Chega o padre) De novo esse menino?


Padre

Vamos chegando... Vamos chegando...


Matogrosso

Quando é que o professor vai chegar?


Padre

O professor sou eu...


Matogrosso

Deixe de brincadeira, rapaz! Só porque você tá aí fardado de Jesuíta tá achando que é padre, é?


Padre

Mas eu sou padre. E sou o professor de vocês, enquanto deus permitir...


Matogrosso

Pois então, desculpe seu Padre. Mas é que eu tenho dois amigos que também querem assistir a sua aula e trabalhar na sua obra.


Padre

Na obra do senhor...


Matogrosso

Não, na minha também... Mas agora eles estão vindo pra trabalhar na sua. Só que um deles passou mal e o outro foi chamar e os dois se perderam...


Padre

Eles podem se atrasar. Mas só dessa vez! Vista-se! Hoje teremos uma aula introdutória, sobre quem é o nosso Senhor e Deus...



Joca

(Chegando) Ô seu padre, eu vim trabalhar! Onde estão as pedras?


Padre

Primeiro as coisas de Deus, meu filho... No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia e as trevas cobriam tudo. E Deus disse: faça-se a luz. E a luz se fez!


Matogrosso

Ô menino, isso aí não tem nada a ver não... Lá na aldeia da onde eu vim, pajé disse que o Deus, chamado “Grande Avô”, se fez de uma papa. Depois ele fez sua esposa e os outros deuses...


Padre

Eu sou o representante de Deus na terra! Estou a serviço da verdade! Quando vocês saírem das trevas da ignorância e forem capazes de ler, verão que as palavras escritas nesse livro são as mesmas que eu estou dizendo a vocês!


Matogrosso

Olha menino, não leva a mal não... Mas é melhor você não ficar falando isso pra todo mundo não, senão vai até pegar mal pra você... O povo fala, viu?


Joca

É isso mesmo seu padre. Ao invés da gente ficar aqui perdendo tempo discutindo religião, o senhor podia ensinar logo a gente a ler e a escrever...


Padre

Silêncio! O professor aqui sou eu! É por isso que vocês aqui não progridem! Mas há um remédio, que nós descobrimos para a sua descrença na palavra do Senhor... Um remédio de acordo com a sua ferocidade... (Pega a varinha e começa a bater em Matogrosso) Você acredita no Deus único, criador de todas as coisas?


Matogrosso

Ai. Ai. Ai. Acredito, sim senhor! Pode falar pra todo mundo que eu acredito! Ai. Ai.


Padre

Que o amor divino venha pela cólera ou pela misericórdia. Quem aqui aceita a misericórdia de Deus?


Matogrosso e Joca

Eu! Eu! Eu!


Padre

Ótimo. Que a paz do Senhor esteja convosco. Bom trabalho a todos...

(Sai)



Matogrosso

Ai... Ai... Que molequinho brabo, sô... Me moeu todo!


Joca

Eu disse para você não brincar com esses padres...


Matogrosso

Ai... Mas eu não tava brincando não... Amanhã eu não falo mais nada nessa aula...


Joca

Isso. Deixa o padre falar o que ele quiser... Contanto que ele nos ensine a ler e nos deixe trabalhar na obra...


Matogrosso

Deixa esses padres falarem o que eles quiserem. Eles não vão ficar seguindo vocês pra todo lado”.


Joca

E ele não tem medo da Inquisição?


Matogrosso

O seu João diz que fura duas inquisições com as flechas dele... O povo chama ele de João Ramalho, porque a cara dele é toda cheia de barba, parecendo um monte de rama.


Joca

Eu ouvi falar dele. É o Português que casou com uma índia, não é?


Matogrosso

O seu João é que é esperto... É Português, mas conseguiu arranjar um jeito de fugir desses jesuítas...


Paolo

(Entrando) Diacho de Português! Eu te procurando por todo lado e você já está aqui na obra! A que horas vai ser a aula?


Joca

A aula já acabou. E esse aí já ganhou até o diploma... (Matogrosso mostra os machucados)


Paolo

Tá vendo! Tá vendo! Fui procurar você e acabei perdendo a aula...


(Começam a trabalhar. Matogrosso vai mostrando aos outros como se faz a mistura e como se faz a armação da construção.)


Paolo

(Assume a armação da parede) E o que é que o padre ensinou?


Joca

(Mistura a argila com o capim e o esterco) Ensinou que só ele é quem fala...


Matogrosso

(Assentando o esterco na armação) E que só tem um Deus. Que é o Deus dele.


Durante esta cena, os personagens fazem as ações da construção.

Joca

Falou do começo do mundo e que Deus escreveu tudo o que fez.


Matogrosso

E se não tá escrito, é porque é mentira.


Paolo

Isso tudo eu já sei... Eu já sou cristão... Batizado e tudo!


Joca

Pronto. Mais um cristão!


Matogrosso

E você já sabe de tudo, é? Fique em casa, trabalhando na maloca, vá fazer o seu quarto... Pra quê quer fazer essa aula?


Paolo

Pra aprender a ler e a escrever em Português.


Matogrosso

Então fala logo com o padre que ele te dispensa do lero-lero e te ensina logo a ler e a escrever...


Paolo

Eu não posso falar disso com o padre... Aliás, não posso nem ser cristão, porque não posso comungar...


Matogrosso

Comungar? O que é isso?


Paolo

Comer o corpo de Cristo. Para isso, é preciso se confessar, e eu preciso arranjar um padre que não queira me castigar pelo que eu fiz...


Joca

O que foi que você fez?


Paolo

Eu matei alguém...


Matogrosso

Grande coisa... Aqui a gente mata direto...


Joca

Quem foi que você matou?


Paolo

Uma mulher... Que apanhava do marido...


Matogrosso

Rapaz, eu não acredito nisso não! Dois homens se juntando pra dar uma surra numa mulher...


Paolo

Vamos falar de outra coisa, está bem?


Matogrosso

Falar de outra coisa....falar de outra coisa... Tô bem arranjado com esses dois... Um foge pra não ser queimado. O outro porque matou uma mulher...

Paolo

E pelo que o seu Martim falou, você também não é grande coisa! Quem é você pra ficar me julgando? Um ladrãozinho índio, que fica se achando Português... Seu mestiço!


Matogrosso

Não me provoque não, viu? Seu assassino! Venha me matar pra você ver se eu morro, venha! Seu mocinha! Mulherzinha... Venha matar homem, venha!


Joca

Fica calmo, Matogrosso. Aqui ninguém quer matar não!


Matogrosso

Seu Martim. Seu Martim... Grande merda o seu Martim... Aquele português não sabe o que é ser mestiço, não! Meu pai, nem sei quem é. Era um safado dum Português que se deitou com a minha mãe e depois fugiu. Levou um monte de índios pra ser escravo e só deixou os velhos, as grávidas e as crianças. E eu fiquei sendo o sinal da desgraça para aquela gente... Até que eu fui embora, tocar a minha vida sozinho. Eu e minha maloca... Sem tribo nem aldeia!


Paolo

Me desculpe, Matogrosso. Eu não devia ter julgado você... Isso é pecado, eu sei... Uma hora eu vou poder contar minha história pra vocês...


Matogrosso

Olhe, você conta se quiser. Não faz mal... Desculpe pelo que eu disse também... Eu nem conheço a diaba da mulher... Vai ver que a bicha dava conta de matar o marido e você também...


Joca

É isso aí... Vamos fazer as pazes e tocar a obra...


Matogrosso e Paolo apertam as mãos... Os três se abraçam... Depois de um tempo se afastam fazendo pose de macho.



Matogrosso

Eita que barulhada é essa!


Joca

É mesmo. Que será que aconteceu?


Paolo

Os escravos estão combinando alguma coisa ali. Por que será que estão alegres?


Matogrosso

Deixa eu ver se essa confusão é lá pros lados da maloca

(Sai)



Paolo

Tô com um mau pressentimento...


Joca

Nunca vi escravo trabalhar com tanta alegria...


Paolo

Minha nossa! Os padres estão correndo para todo lado!


Joca

É guerra?


Paolo

É! É guerra sim!


Paolo

Eles estão vindo pra cá! Toma, pega isso e se esconde! (Dá uma vassoura)


(Escuta o grito do índio. Pega a vassoura e se esconde atrás dela. Fica imóvel)



Índio

(Entrando) Eita que eu estou sentindo cheiro de português!


Joca

Ai meu Deus... O que será que ele está falando?


Índio

Ah se eu encontro esse Português... Eu faço assim! (Bate em Joca) Que nem eu faço com essa árvore!


Paolo

Pai nosso, que estais no céu...


Índio

Opa! Escutei a choradeira dos brancos... Acho que eles estão escondidos... Deixa eu ver se estão em cima dessa árvore... (Sobe em Joca) Não... Mas essa árvore fede demais...


Joca

Ele está me cheirando... Será que ele pensa que eu sou comida?


Índio

A carne deles deve estar podre... Que fedor! BRANCO! ONDE ESTÁ VOCÊ?


Índio

Cansei dessa brincadeira... Não quero saber de oca de padre aqui. (Chuta a obra e quebra tudo)


Joca

(Tira o disfarce) Lazarento! Está pensando que pode chegar aqui e ir quebrando o trabalho dos outros?


Índio

Opa! A árvore fedorenta é um Português! Que será que ele está falando?


A conversa entre eles é falada e gesticulada. Fazem os gestos para tentarem se entender.

Joca

Seu lazarento! Você vem aqui e quebra tudo? Por que não vem ajudar a fazer?


Índio

Você é grande como uma árvore. Mas eu te bato. (Faz gesto de bater)


Joca

Ah, entendi. Porque você é burro como uma porta... Pois pode levantar o que você destruiu. (Faz gesto de levantar)


Índio

Foi um maior que você? Pois eu pego ele e você e quebro no meio assim! (Faz o gesto de quebrar)


Joca

Filho da mãe! Disse que quebrou e que vai quebrar mais... Paolo, vem aqui ver esse índio sem vergonha...


Paolo

Cadê? Ah, é disso que a gente tava se escondendo...


Índio

Esse é o maior? Rá Rá Rá...


Paolo

Do que será que ele está rindo?


Joca

Não sei. Acho que ele está rindo da tua cara.


Paolo

Pois então eu vou rir da dele. Rá Rá Rá.


Índio

Ei, do que você está rindo? (Mostra o rosto)


Joca

Safado, disse que riu porque você é feio demais...


Paolo

Feio é você. (Faz uma careta)


Índio

Que é isso? Tá dizendo que eu sou feio? Feio é esse Português. (Aponta Joca)


Paolo

Disse que você é feio... Isso é verdade. (Faz sinal de concordar)


Índio

O branco concorda. (Percebe que Paolo está perto demais e o toca)


Paolo

Vamos parar com a conversa fiada. O senhor acha que é quem para vir estragar o trabalho dos outros?


Índio

Branco vem e pega o índio para fazer trabalho. Padre vem e amansa o índio, pro índio trabalhar sem reclamar. Índio vem e solta os outros índios.


Joca

Se quiser levar seus irmãos, pode levar. Amanhã chega outra remessa e a obra continua...


Índio

Quer dizer que Índio leva os irmãos embora e tudo fica certo.


Paolo

Certo.


Índio

Então, índio vai embora.

(Sai)



Joca

Foi embora, mas estragou nosso trabalho...


Paolo

Pelo menos ele não matou a gente...


Joca

Você entendeu o que ele disse?


Paolo

No começo não. Depois, acho que sim...


Joca

Acho que ele falou que os portugueses escravizam os índios e os padres os amansam...


Paolo

Será? Mas o seu Martim ofereceu uma mula pelo Matogrosso e mais dois índios... Acho que os índios não valem muito por aqui.


Joca

É, os índios são quase animais...


Paolo

Não... A gente não consegue conversar com um macaco. Mas conseguimos entrar num acordo com aquele índio, não foi?


Joca

É. Isso é verdade... Vai ver que são pessoas mesmo...




Matogrosso

(Entrando) Viche! Os tamoios invadiram a vila e saíram quebrando com tudo. Ainda bem que nem passaram perto da maloca.


Joca

O dia tá terminando... Daqui a pouco a gente vai embora e pode continuar a construção da biboca.


Matogrosso

Viche! Tinha me esquecido disso... Tô tão cansado... Acho melhor a gente deixar para terminar a maloca no fim de semana. No sábado.


Joca

No sábado eu não posso trabalhar...


Matogrosso

Como é que é? E vamos fazer a maloca quando? Só no domingo?


Paolo

No domingo não pode. Os padres não deixam...


Matogrosso

Mas então vai mal... Se não pode trabalhar no sábado, nem no domingo, como é que vai ser isso hein?


Paolo

A gente faz assim: primeiro assistimos à aula... Depois sai um e trabalha de manhã. Na hora do almoço, volta e aí sai um outro, que trabalha à tarde.


Matogrosso

Mas aí ficou faltando um. Ele não trabalha não?


Paolo

Trabalha. Ele é o primeiro do dia seguinte. E depois do almoço, vai o que trabalhou na manhã do primeiro dia... A gente vai fazendo escala...


Matogrosso

Pois então, ‘bora descansar, que amanhã é dia de índio... (Saem)





Terceira parte – Novos tempos

Joca e Paolo entram em cena e repetem a pantomima da construção por um tempo. Entra Matogrosso e Paolo sai. Matogrosso e Joca continuam o jogo. Sai Joca e entra Paolo. Continuam. Sai Matogrosso e entra Joca. Ficam Joca e Paolo, como no início. A cada passagem, vão aumentando a velocidade da pantomima.

Paolo

Acho que já estamos quase terminando a maloca... E o Colégio...

E a Igreja também... Você já reparou que coisa linda?


Joca

Parece que os padres vão querer celebrar uma missa de inauguração hoje... Vem um padre para ouvir a confissão de todo mundo... Estou até pensando em me converter...


Paolo

Você? Está pensando em se converter? Que legal, Joca! Você vai ser cristão, que nem eu!


Joca

Eu pensei no que o Matogrosso me falou, dessa história de deixar os padres pensarem que a gente é cristão, e cada um faz o que quer...


Paolo

Isso é pecado!


Joca

Mais ou menos... Eu vou fazer o bem, conforme os padres pedem... É que eu cansei de ficar me escondendo e fugindo, sabe? Quero ficar em paz... Então vou aceitar ser cristão.


Paolo

(Concordando) Eu também queria ficar em paz e me confessar. Queria receber o perdão de Deus... Mas não pode ser qualquer padre. Eu queria uma pessoa mais velha, não um menino, que nem esse professor...


Joca

Ora, padre é padre. É tudo igual...


Paolo

Não é não... Esses padres meninos daqui não têm muita experiência de vida. Como é que eles vão entender o que leva uma... pessoa a fazer o que eu fiz?


(Se saúdam)

Padre

Filhos... Vocês sabem que hoje, dia de São Paulo, vamos inaugurar a nossa obra.


Paolo

Nós gostaríamos que Deus tivesse a melhor casa que a gente pudesse construir...


Padre

Mas essa casa de que você fala já existe...


Paolo

E que casa é essa, seu Padre?


Padre

É o seu coração, meu filho... Deus poderia morar no coração de vocês, se vocês o aceitassem... Filhos, vocês querem se confessar?


Joca

Eu quero, seu padre. Mas queria que o senhor me garantisse que eu não vou sofrer, pelo que vou lhe contar...


Paolo

Joca, eu posso ir primeiro? Eu tô com isso entalado em mim faz tanto tempo...


Joca

Tá bom... Quando terminar, você me chama...

(Sai)



Paolo

Seu padre, eu pequei. Pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras. O que eu quero dizer, seu padre... É que... Havia uma mulher, na Itália, que era casada com um carpinteiro...


Padre

Continue...


Paolo

Essa mulher se casou muito jovem, porque o pai a havia prometido a esse homem, que era muito tosco...


Padre

Sim.


Paolo

No início do casamento, ele a tratava bem. Mas depois, sem motivo, ele passou a maltratá-la... Ele a obrigava a trabalhar na carpintaria, a carregar peso... O homem passou a bater nela... Num dia, ela apanhou tanto que ele achou que ela estivesse morta. Ela aproveitou e resolveu que ia embora... E como na Itália, não podia viver sem um homem, fingiu que era homem e fugiu para Portugal...


Padre

E essa mulher é você, não é, minha filha?


Paola

E depois eu aprendi o ofício de timoneiro e decidi encontrar um lugar aonde eu pudesse ser quem eu era. Meus únicos amigos são esses dois que estão comigo agora... Eles viraram a minha família.


Padre

Filha... Você não pode mais continuar vivendo essa situação de pecado... O casamento é coisa séria... um sacramento de Deus...


Paola

Mas o homem teria me matado, seu padre...


Padre

Mas Deus a perdoará minha filha, se você lhe fizer a promessa de nunca ter nada com outro homem, voltar a ser mulher e se dedicar a serviço do reino de Deus. Promete?


Paola

Prometo, sim Sr.


Padre

Eu te absolvo, minha filha, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Que a paz do Senhor esteja convosco... Agora, trate de arrumar um vestido bem bonito para comungar o corpo do Senhor.


Paola

Obrigada, seu padre! (Sai)


Joca

(Entrando) Seu padre, agora é a minha vez...


Padre

Pois então, meu filho, pode começar...


Joca

Seu padre, eu sou Judeu. (O Padre levanta) Mas trabalhando aqui na construção dessa Igreja e convivendo com os padres eu resolvi que queria me tornar cristão. E eu gostaria que o senhor me batizasse e que a gente já resolvesse logo essa coisa toda...


Padre

O senhor é bem direto, não é? Filho, se você aceitar o Messias, o seu processo na Santa Inquisição será arquivado e você será um cristão. Com isso, você terá vida nova.


Joca

Pois é exatamente isso o que quero. (Abaixa a cabeça) Meu nome é Joaquim.


Padre

Pois então: eu te batizo Joaquim Pereira, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


Joca

Amém!


Padre

Filho. Como cristão, você deve seguir os mandamentos do Senhor e no fim do dia gostaria que o senhor e sua amiga fossem à missa...


Joca

Amiga? (Para o padre) Pode deixar seu padre. Vou à missa e vou levar meus dois amigos...


Padre

Que a paz do Senhor esteja convosco...

(Sai)



Joca

Agora eu vou ter paz! Sou um cristão! Graças a Deus...


Paola

(Entrando, vestida de mulher) E então, Joca? Está preparado para ouvir o que eu vou te dizer?


Joca

(A parte) Ué, quem é essa mulher? (Para Paola) Pois não, senhora? A senhora falou comigo?


Paola

Deixa de ser besta, Joca. Não tá me reconhecendo? Sou eu!


Joca

(A parte) Acho que está me confundindo... Que bonitinha! Pena que não tem bigodes... (Para Paola) Ah, sim... Já me lembrei da senhora...


Paola

Lembrou? Como assim? Sou eu, sua besta! Paola!


Joca

Paola? Irmã do Paolo? (A parte) Será que ele falou de mim para ela?


Paola

Falou. Ele disse que o senhor não toma banho, que quando toma é de botas e que seu pé é fedido que nem carniça...


Joca

Aquele italiano! Ele vai se ver comigo... Venha cheirar as minhas botas para ver se estão fedendo...


Paola

Deixa disso, Joca... Sou eu, o “Paolo”, que você conhece... Quero dizer, quase... Eu sou mulher.


Joca

(Escondendo a virilha, como se estivesse nu) Paolo? Meu Deus... Você virou mulher? Como foi que aconteceu isso?




Matogrosso

(Chegando) Ê Joca, arranjou uma namorada e nem me conta nada, hein?


Joca

Essa aí não é minha namorada não, sua besta...


Matogrosso

Não é não? Ah... Então deixa ela pra mim... Faz tanto tempo que eu não vejo isso que já até esqueci como é que é... E aí, princesa, vamos brincar ali na minha maloca?


Joca

Seu tonto... Vai brincar com homem, agora?


Matogrosso

Não é com você não, sua besta. Tô falando com a moça...


Paola

Acontece que a moça aqui era homem, e amigo de vocês...


Joca

Tá vendo? Essa aí era o Paolo...


Matogrosso

Como é que é? (Cobre a virilha como se estivesse nu)


Paola

Pois é. Eu sou mulher.


Matogrosso

Caramba! Agora eu entendi tudo!


Paola

Entendeu? Meu crime era esse. A mulher que eu matei...


Matogrosso

(Corta) Já sei. Você era a amante do sujeito que batia na mulher feia que só o cão. Vocês se juntaram e mataram a esposa do homem e daí você fugiu.


Joca

Ela era a esposa e matou a amante. E inventou a história toda só pra gente ficar com pena dela...


Matogrosso

Ela era o homem que matou as duas mulheres quando elas descobriram que ela não era homem coisa nenhuma.


Joca

Como é?


Matogrosso

Não sei mais... Se afasta daqui, sua diaba!


Paola

Não sejam tontos... A mulher que eu matei era eu mesma...


Matogrosso

Você se matou?


Joca

Isso é assombração! (Se abraçam com medo dela)


Paola

Não, seus bobos! Eu tive que fugir da Itália, porque eu quase morri de tanto apanhar do meu marido...


Matogrosso

Aí você se vestiu de homem e deu uma surra nele?


Paola

Não. Eu só o deixei. E me fingi de homem para poder vir nas embarcações. Aqui ele nunca mais vai me encontrar...


Joca

Por que é que você não disse logo?


Matogrosso

Tinha dito que era mulher e se arrumado assim, toda bonita, que a gente ia trabalhar até mais feliz...


Paola

Porque eu sabia que tinha pecado. “O que Deus uniu, o homem não separe”.


Matogrosso

Mas aqui não tem essa besteira não. A gente nem ia ligar, contanto que você continuasse a ajudar a gente com a maloca...


Joca

Mas os padres não permitem isso...


Matogrosso

Ah, pois eu também tenho uma novidade para contar pra vocês...


Paola

Você também é mulher?


Matogrosso

Venha ver se eu sou mulher, venha! Eu sou macho, minha filha! Muito macho!


Joca

Fala logo, Matogrosso!


Matogrosso

Eu tava dizendo, antes dessa aí... Virou mulher agora e já acha que pode ficar zombando dos outros... Mas veja, mesmo!


Paola

O que foi? Que é que você quer contar?


Matogrosso

A maloca já tá toda pronta. Agora cada um vai ter o seu quarto, a gente vai poder cozinhar na cozinha, se banhar no banheiro...


Paola

Que beleza!


Matogrosso

E vocês podem ficar morando lá o tempo que vocês quiserem, porque agora que essa obra acabou vai ser difícil da gente arranjar trabalho.


Joca

Matogrosso, você já está sabendo da expedição do Seu Martim pra procurar ouro no meio da mata?


Matogrosso

Pois eu já fui falar com seu Martim e ele me disse que índio não entra. E não adiantou eu falar que não sou índio... Ele me mandou correr...


Joca

Quer dizer que vocês não vão?


Matogrosso

Vá você, homem! Que você não nasceu grudado com a gente não...


Joca

Matogrosso, o que é que você vai fazer?


Matogrosso

Quando seu Martim for para essa tal dessa expedição... eu desço lá pra Santos e trago mais uns pra cima... Enquanto isso, a Paola toma conta da maloca.


Paola

É... Matogrosso... (Encabulada)


Joca

Paola, Matogrosso, Seu Martim disse pra não deixar nada pra trás... Por isso, eu queria dar para vocês a minha parte na maloca. (Percebe que acertou)


Matogrosso

E o nosso plano de construir as três malocas?


Joca

Vai ter que ficar pra outro dia, quem sabe... ... Adeus (Sai)


Paola e Matogrosso

Até mais Joca!


Paola

Lá vai o Joca... Vou sentir a falta dele!


Matogrosso

Eu também... É, italianinha... Parece que agora ficamos só nós dois... Não quer deixar pra lá essa história de fazer outra maloca? A gente vai morando junto...


Paola

Não posso, Matogrosso. O padre me proibiu de viver com outro homem.


Matogrosso

E você vai morar onde agora?


Paola

Não sei... Estou pensando em me oferecer para trabalhar na casa dos padres. Eu cozinho para eles e faço a limpeza. Em troca eles me dão instrução e moradia... O que você acha?



Matogrosso

Você é quem sabe... Mas eu não tô achando isso certo não... Que é que eu vou fazer sem vocês dois, hein? Eu queria fazer a maloca de vocês bem pertinho da minha, pra gente não ter que se separar! E agora vocês me vêm com essa...



Martim

(Entrando) Ali, ali adiante onde está aquela maloca. Pode derrubar e ali vai ser o mercado.


Matogrosso

Êpa. Êpa! Aquela maloca ali tem dono! Não vão derrubar nada não senhor!


Paola

É isso aí, Seu Martim! A maloca que o senhor apontou tem dono. Vá construir o seu mercado em outro lugar.


Martim

Fique quieta mulher. Eu estou falando com o índio. Onde é que está a escritura daquela maloca?


Matogrosso

Não tem isso não. O lugar tava vazio e eu fui lá e levantei minha maloca, junto com meus amigos...


Martim

Isso quer dizer que o senhor é invasor e a maloca vai abaixo!


Matogrosso

Seu Martim, eu sei que o senhor não vai com a minha cara e tudo o mais. Mas destruir minha maloca, depois que eu trabalhei pro senhor, de graça, nessa obra? Não precisa disso não...


Martim

Não é nada pessoal, mestiço. Você precisa entender que o progresso é o destino dessa vila. É preciso construir um mercado. E o melhor lugar é aquele em que você construiu a sua maloca, porque fica perto do rio...


Matogrosso

Eu sei. Eu sei. Perto do rio, num lugar bom que a enchente não pega e fica perto dos barcos...


Martim

Um lugar excelente. Aliás, muito boa a sua visão de negócios... Um homem à frente do seu tempo...


Matogrosso

É. À frente e alguém atrás, só me lascando!


Martim

Ora. Vá o senhor e sua esposa ao meu escritório e poderemos tratar da escritura de um novo loteamento...


Paola

Se o senhor vai derrubar essa maloca é justo que o senhor construa outra.


Martim

Vocês têm somente o dia de hoje para tirarem os seus pertences de lá. Nós derrubaremos a maloca, construiremos o mercado, que é o mais importante para a vila agora. Não quero saber de feiras ao ar livre. A partir de agora, quem quiser vender suas coisas vai ter que vender no mercado.

Depois conversamos sobre essa maloca.

(Sai)


Matogrosso

Como é? Ei, volte aqui que eu não terminei! Ninguém vai derrubar nada, entendeu? A maloca é minha! Eu a construí com o meu trabalho! (Pega uma garrafa de cachaça) Ninguém venha derrubar não! Se vierem eu flecho!


Paola

O homem está com a razão. Nós arruma outro lugar!


Matogrosso

Esses brancos de uma figa! Vão acabar com a minha maloca, desgraçados! Mas eu vou criar coragem... (Bebe) Eu vou matar aquele desgraçado daquele seu Martim! (Bebe) Vai chegar o dia em que quem vai mandar sou eu! (Bebe) Vai vir uma caravela e que vai me levar pro outro mundo... (Bebe) E quando eu chegar lá, vou mandar em todos esses brancos... (Bebe) Uma terra onde o índio é quem manda! (Saindo)


Ator 1

(Entrando) E como a caravela de Matogrosso não chegava nunca, ele saiu pelas matas desse país, em busca dela, atravessando as terras de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Voltou pra vila, agora um gigante chamado São Paulo, cheio de máquinas que pareciam pessoas. Pensou que o gigante é quem escondia o barco e então lutou com ele... A cada batalha perdida, mudava de cor. Virou, branco, preto, índio, caboclo, mameluco, depois mulato... Depois se misturou tanto, com tantas cores diferentes, que perdeu o nome do que era e ficou sendo brasileiro... Matogrosso ainda briga com o gigante, sempre na esperança de que um dia vai vencê-lo e libertar a caravela que vai levá-lo ao paraíso... (Sai)


Atriz 2

E Joca pegou em armas e se meteu a procurar ouro. Foi ao Norte, e ao Nordeste. Perdeu-se no meio do país. Fugiu dos índios e se escondeu dos portugueses, num lugar em que achou ouro. Enriqueceu. Comprou terras. Voltou para São Paulo de Piratininga com dentes de ouro e as mesmas botas fedidas que tirou quando chegou. Um dia, sem razão aparente, sentiu saudades do tal café. Botou na cabeça que ia conseguir sementes com os negros e embarcou noutra viagem. Andou tanto que as botas se gastaram e ele as perdeu. E o povo, pra dizer que alguém morava longe passou a dizer “Lá onde o Joca perdeu as botas”. Arranjou uma mulher com bigodes, que era índia. Seu bisneto virou barão. E o tataraneto, industrial... (Sai)


Ator 3

Paola foi ficando com os padres e pegando gosto pela catequese. Ela que passou a vida inteira fazendo trabalho de homem, achou que podia ser padre. Aprendeu a ler a Bíblia e a escrever em latim. Mas não teve jeito... Não pôde usar batina... E ela, que não era de se conformar, saiu pelo país ensinando os índios a ler e a escrever. E aprendeu deles as suas histórias, seu folclore, suas danças. Anotava tudo isso em muitos papéis, muitas pinturas, porque queria escrever uma Bíblia com a história da gente que vive e trabalha nessa terra. Um dia, Paola anotava a história contada por um índio e descobriu, da boca dele, que a igreja que ajudou a construir tinha sido destruída e reconstruída. Naquela noite, ela sonhou que estava trabalhando na reconstrução da igreja e encontrava seus dois amigos...


Joca

(Entrando) Eita que hoje eu tava me lembrando daquela nossa idéia de maloca...


Matogrosso

E eu também... Me deu uma saudade danada daquele tempo em que a gente vivia lá.


Paola

É... Era uma maloca querida aquela, hein?


Joca

É. A finada maloca...


Matogrosso

Saudosa. Saudosa maloca...


Joca

Gostei... Saudosa maloca. Maloca querida...


Matogrosso

Saudosa maloca... Maloca querida... Isso dá música... Saudosa maloca, maloca querida, din din donde...


Paola

Donde nóis passemo dias feliz das nossas vida.



Joca

Fechou! Vamos de novo...


Os três

Saudosa maloca. Maloca querida. Din din donde nós passemo dias feliz das nossas vidas.


FIM